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Moscou. Kandinsk, 1916. |
Eu começo a sentir a embriaguez a que essa vida
agitada e tumultuada me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando
diante de meus olhos, eu vou ficando aturdido. De todas as coisas que me
atraem, nenhuma toca o meu coração, embora todas juntas perturbem meus
sentimentos, de modo a fazer que eu esqueça o que sou e qual o meu lugar (Rousseau,
na voz de Saint-Preux de “A Nova Heloísa”).
Marshall Berman foi criado no bairro do Bronx, Nova Iorque, e ficava fascinado ao
perceber-se parte de um ambiente que todos definiam como moderno, o ambiente de uma grande metrópole em transformação em
meados do século XX. Isso o influenciou de tal maneira, que dedicou grande
parte de sua vida aos estudos sobre a modernidade. Acabo de ler sua obra mais
importante sobre o tema: Tudo que é
sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade, Companhia de Bolso, 1982, 465
p. Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. O livro, de
leitura fluida e extremamente agradável, é virtualmente um passeio pela
literatura, arquitetura, política e artes modernas e revela, em cada parágrafo,
um intelectual capaz de falar com desenvoltura e elegância literária pouco comum
sobre temas tão variados e nos conduzir em uma viagem que, sendo muito da
história de sua própria vida, é a história de todos nós, os modernos (mesmo que
nem se conheça o tema ou se tenha lido sobre isso). De formação Marxista
(Berman sugeriu em entrevista que nutriu desde cedo uma posição de vingança contra o capitalismo, pelo fato
de seu pai ter morrido de enfarte após problemas com os negócios), o autor
apropriadamente escolhe a famosa frase de Karl Marx no Manifesto Comunista como título ao livro e ao resumo mais
sintético, me parece, do que seria a própria modernidade:
“Todas as relações fixas,
enrijecidas, com seu travo de antiguidade e veneráveis preconceitos e opiniões,
foram banidas: todas as novas relações se tornam antiquadas antes que cheguem a
se ossificar. Tudo que é sólido desmancha
no ar, tudo que é sagrado é profanado, e os homens finalmente são levados a
enfrentar (...) as verdadeiras condições de suas vidas e suas relações com seus
companheiros humanos.”
Marx
é constantemente revisitado pelo autor. Este filósofo é um elo de conexões que interrelaciona
Rousseau (segundo Berman, o primeiro a usar a palavra moderniste no sentido que será utilizada nos séculos XIX e XX), Goethe,
Nietzsche, Dostoievski, Gogol, Puchkin, Baudelaire e Maiakovski, entre outros, na
tentativa de nos transmitir a ideia de construção da modernidade e de suas
implicações. Berman nos transmite através desses autores a sensação de sermos
modernos, de fazermos parte desse turbilhão
que tudo transforma, que nos inquieta constantemente, mas que ao mesmo tempo é
tão amplo em possibilidades. Tece ainda especial crítica aos pós-modernistas, em especial a Foucault
(talvez porque capitaneados por este), por, segundo ele, abdicarem da tentativa
de construir um modelo mais verdadeiro (não retalhado em uma série de componentes
isolados – industrialização, urbanização, formação de elites) para a vida
moderna. Berman considera que Foucault reserva
seu mais selvagem desrespeito às pessoas que imaginam ser possível a liberdade
para a moderna humanidade e estranha que muitos intelectuais da atualidade
(ele falava nos anos 80, mas ainda soa válido em 2012) parecem querer definhar
no cárcere criado por Foucault, pelo
seu discurso do poder, que nos
privaria de, pelo menos, resistir às opressões das injustiças da vida moderna e
adentrar suas possibilidades.
Essa
possibilidade de liberdade é também explorada por Marshall Berman ao indicar a
rua, as cidades e as praças como os lugares onde a liberdade deve se fazer mais
viva. A ocupação do espaço público das cidades modernas pelas pessoas comuns.
Aqui vemos no livro um magnífico passeio pela arquitetura de cidades como
Paris, São Petersburgo e a própria Nova Iorque de Berman, e de como sua
conformação urbanística cria e influencia a própria modernidade. O autor se
utiliza de grandes autores (atores) dessas cidades, como Baudelaire e Gogol,
por exemplo, para nos apresentar suas hipóteses sobre a urbanidade. A Rússia e
seu particular desconforto em relação
ao resto da Europa moderna (percebe-se claramente esse viés nos textos de
Dostoievski), e mesmo assim centro de revoluções (ainda que algumas, talvez,
historicamente fracassadas – se é que se pode falar em fracasso na história) que ajudaram a criar o conceito de liberdade
para o homem moderno, tem papel de destaque nesse belo trabalho. Berman não cita um filme, A Arca Russa (nem poderia fazê-lo, pois foi produzido em 2002 e o
livro vinte anos antes), mas ouso fazê-lo. Acho que este filme, de 1h37min filmado
em uma única tomada no Museu Hermitage de São Petersburgo, e no qual um diplomata
francês do século XIX inicia uma jornada pela história da Rússia entre os
séculos XVIII e XXI, pode ajudar muito na compreensão deste país e na
corroboração dos conceitos do livro sobre a Cidade
de Pedro e a modernidade à moda russa.
Nesta
manhã de domingo, ao terminar a leitura deste livro e escrever essa pequena secreção
sobre minhas impressões leigas, sinto que aprendi um pouco mais sobre me sentir em casa neste mundo moderno. No
momento em que escrevo, Coltrane está ao fundo com seu magistral A Love Supreme. Nada me parece ecoar
mais os sons da modernidade. Sinto-me em casa.