domingo, 30 de outubro de 2011

A Semente Urgente


Foto e cozinha: Clístenes Nascimento
 O molho esperaria. Havia esperado até hoje. Até esse domingo, até o corte da faca... A semente urgente, essa não esperou. Ficou enfastiada do escuro do fruto. Queria ser planta e de molhos não sabia nada. A semente impaciente brotou no escuro do fruto. Semente-esperta, danada, não se fez de rogada: brotou no escuro do fruto! Queria ser feliz, eu acho...

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Super Homem, a canção

Terremotos com 8.8 na escala Richter não sabem nada sobre alterar a rotação terrestre... Saudade de Superman, "mudando como um Deus o curso da história por causa da mulher". Salve Gil, na bela analogia, a nos trazer Nietzsche e lembrar-nos que ser (apenas) Homem já não basta...

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Anabella


               Eu sempre desacreditei nestas coisas do além, muito além de qualquer crença que porventura quisesse ter. Mas agora recebo essa oferta irresistível por e-mail. Veja que não falo dessas ciganas com vestidos seborrentos que agarram a mão da gente no meio da rua que quase arrancam um dedo... Deixa eu ler seu futuro, moço... Argh!! Não, essa me chegou on line, toda moderna e cheia dos bits estelares, conseguindo escapar com sua energia positiva da minha caixa de spam. Coroa bonita, a danada da vidente (Ah, eu alguns anos mais velho...). E, ainda por cima, uma intelectual (Professora em artes e ciências adivinhatórias, astróloga, numeróloga, especialista mundial em tarô e runas). Aposto que tem até alguns livros publicados por alguma editora com corpo editorial formado por desencarnados de Harvard ou da Sorbonne. E você não sabe o melhor: a sua grande vidência 100% GRÁTIS! Madame Anabella me garantia, com seus belos olhos castanho-hipnose. Aliás, não apenas ela. No banner estilizado com cortina vermelha e dedinho de unha também vermelha sobre uma carta do Arcano Maior, havia ainda um casal de Curitiba (lindo eles abraçadinhos) asseverando que voltamos a ser felizes no nosso casamento. Veja que isso não é coisa fácil de conseguir sem a ajuda de uma vidente... E o mais curioso (foi isso que me deixou intrigado e com meu grau de crença nas alturas celestiais) é que de alguma maneira ela sabia meu nome. Clístenes, mude a sua vida agora com os conselhos de Anabella. Ou seja, a mensagem era realmente para mim!! Quando ela perguntou se eu desejava amor, dinheiro e sucesso (não sei porque ela considerou exatamente essa ordem e se eu poderia alterá-la ou interrelacionar as prioridades...), como eu poderia me negar a ouvir os seus conselhos? Quem não quer essas dádivas terrenas em qualquer ordem que seja? Eu, que sempre disse aos meus pobres pós-graduandos que a ciência, apesar de sua tosca e falha aproximação do que chamaríamos de verdade, é a melhor maneira de prever o futuro que temos, senti cada modelo matemático estremecer ante a possibilidade de que um jogar de cartas, uma voz do além, uma avaliação de fezes, uma tremidinha de ombros valha mais do que qualquer estatística paramétrica. Ela pediu e eu obedeci cegamente (me sentia em uma conexão astro-telepática com Anabella....): clique aqui. Como sabia que ninguém descobriria minha infidelidade racionalista, pois fui avisado que era 100% confidencial, fui em frente. Cliquei. Como pedido pelo e-mail de confirmação, validei minha vidência gratuita. Que coisa moderna, limpinha, essas clarividências pós-modernas. Não posso nem me lembrar do vestidinho seborrento da cigana na rua... Segui com o mouse ao meu espaço privativo onde, com a mão ainda trêmula pelo que o futuro me reservava, Anabella muda o tom da conversa (embora os seus cabelos continuassem impecavelmente penteados): Se, apesar de meus esforços, você não ficar 100% satisfeito com meu trabalho espiritual, visite: www.payandpray.com para pedir o seu dinheiro de volta (30 dias de garantia). Fiquei com o meu recém-desperto esoterismo um pouco abalado, confesso. Eu sou uma pessoa difícil demais de ficar 100% satisfeito... Vá lá, uns 90% em alguns casos. E essa estória de dinheiro de volta? O cursor titubeou junto com a alma desencantada. O teclado queria, mas a mão negava... Anabella, Anabella... Acabei clicando no xizinho no alto da aba. Fechei Anabella e sua pele diáfano-esotérica da janela do meu navegador. O fluido subliminal que nos unia se desfez. Não adianta. Esse meu ceticismo tem algo de  parapsicopatológico. Vai acabar me matando de descrença ou, pior, me impedindo de alcançar mais rapidamente, pelas vias da iluminação da clarividência, amor, dinheiro e sucesso (em qualquer ordem que seja...).

domingo, 16 de outubro de 2011

Tannhäuser: Amor e Arte vão à Ópera


Tannhäuser e Vênus (Otto Knille, 1873)

Uma noite de Ópera em Paris. Certamente alguns torcem o nariz para a música erudita ou balé, por exemplo, como se isso significasse uma clara demarcação de território, mais metido ou superior ao que se chamaria de popular... Outros, torcendo o nariz em sentido contrário, consideram-se por demais sofisticados para se entregarem ao deleite de um sambinha fortuito, desses que dá vontade de balançar a bunda de maneira contida ou desvairada. Como cantaria João Gilberto, “Madame não gosta que ninguém sambe! Pra que discutir com Madame?”. Com a ópera, que me parece tem um lugar de destaque na ideia de que pode ser aborrecida e indecifrável, acontece esse tipo pré-conceito. De fato, exige alguma atenção, mas a recompensa poderá ser deveras agradável para os de ouvidos, olhos e espírito abertos.
Paris tem duas magníficas casas para ópera que tive a oportunidade de conhecer. A Ópera Garnier, belíssima obra de arte que demorou 15 anos (1860-1875) para ser construída, sob os auspícios de Napoleão III, e a Ópera Bastille, inaugurada em 1989 e que é uma belezura de arquitetura moderna, acústica e conforto. Nesta assisti semana passada uma montagem da Ópera Tannhäuser, de  Richard Wagner, espetáculo dividido em três atos, cantado em alemão e com quatro horas de duração. Pode parecer árdua a tarefa. Não me foi nem um pouquinho. Havia legendas em francês, o que me permitiu acompanhar adequadamente os versos. A música de Wagner, claro, magnífica. Os cantores (tenores, barítonos, sopranos, baixos) preencheram a alma e as horas com uma beleza colossal. Os cenários, o figurino, a dança, a encenação. O conjunto, a meu ver, faz da ópera o mais abrangente dos espetáculos. Nem por isso, e por demais o contrário disso, inacessível. 

Ópera Bastille, Paris.


A história contada parece simples, tocante e, apesar de escrita e composta no século XIX (a primeira apresentação foi em 1845, em Dresden, Alemanha), é bastante atual como toda grande obra. Wagner coloca Tannhäuser deparando-se com as contradições de seus sentimentos e a busca de inspiração para sua arte. Um parêntese aqui para detalhar que o artista, que na lenda original germânica é um poeta, é apresentado por Wagner também como artista plástico e cantor. Um artista múltiplo do futuro, segundo o diretor de cena do espetáculo, Robert Carsen. A busca do artista é representada pelo amor de duas mulheres (ou duas formas de amor). Uma delas é a própria Vênus, que como sabido é de induzir qualquer cristão ou ateu à devassidão do amor carnal. Com Tannhäuser não seria diferente. Vênus é a inspiração dionisíaca para sua arte, representada pela pulsão sexual que pode ser, ao mesmo tempo, uma benção e uma maldição. O primeiro Ato deixa essa contradição clara na tentativa desesperada do artista em retratar, apreender, sua musa na pintura. O pincel, a tela, o palco, a cama, a alma do poeta jorram vermelho. Há algo de Prometeu aqui, na busca do artista de criar algo maior do que é dado ao ser humano conhecer. Neste primeiro Ato vemos o artista completamente dominado pela beleza de Vênus, suplicando-lhe que seja sua musa e o ame como homem. A deusa da beleza promete-lhe então grandes prazeres e inspiração se ele permanecer com ela no Venusberg, a montanha onde habita, supostamente escondida dos mortais. Ao que parece, entretanto, após deleitar-se um ano em luxúria com a deusa, Tannhäuser sente-se incompleto, preso ao amor sensual de Vênus, e clama por sua liberdade. Vênus fica uma arara e diz-lhe que se ele escolher descer à Terra nunca mais lhe será permitido voltar. Apesar da DR com a divindade e da tentação quase irresistível (lembremos que o poeta estava em lida com a própria deusa do amor, representada nesta montagem, em corpo nu, pela mezzo-soprano Sophie Koch), o pobre atormentado reúne forças para deixar Venusberg. Ao abandonar sua musa, sozinho e se remoendo dos pecados do passado, Tannhäuser se junta a peregrinos penitentes. Nisso, aparece-lhe o amigo Wolfram que, surpreendido, quer saber por onda andava. Tannhäuser se recusa a contar-lhe que passou o tempo todo de desaparecimento se refastelando nos braços de Vênus. No entanto, decide retornar para sua cidade com Wolfram quando este lhe recorda o amor de Elizabete, a sobrinha do Landgrave (título de nobreza alemão), e seu amor sem fim por ele. Outro parêntese para dizer-lhes que Wolfram, em segredo, é apaixonado por Elizabete e parece de um ato digno de menção ao conduzir o amigo ao encontro do amor que ele próprio desejava...
O segundo Ato iniciou com uma linda introdução da orquestra e um belíssimo dueto do tenor Christopher Ventris e da soprano Nina Stemme no reencontro de Tannhäuser e Elizabete. Wolfram, coitado, os assiste sem ser notado. O Landgrave decide promover uma festança e promete a mão de Elizabete ao vencedor de um concurso artístico que versará sobre a quintessência, a verdadeira natureza, do amor. Aqui os convidados são representados por um coro, elegantemente vestido, que adentra o cenário e participa da festa. Wolfram é o primeiro a se apresentar e faz um tributo de amor idealizado à Elizabete. Tannhäuser, por sua vez, ainda com corpo e alma possuídos por Vênus apresenta um verdadeiro hino aos prazeres carnais. Os convidados se escandalizam, dizem impropérios e exigem que ele abandone o salão. Elizabete, no entanto, entendendo os tormentos do amado (e, pensei eu, o perpétuo conflito interior do artista ao tentar dar forma à sua criação) os interrompe declarando que eles não têm o direito de julgá-lo. Aqui Elizabete parece aceitar dividir o amor de Tannhäuser com sua musa. Em verdade, com sua Arte (personificada em Vênus), uma amante exigente que ocupará sempre o primeiro lugar de suas atenções. Neste momento da Ópera aparece a representação dos amores do artista. De um lado Vênus, personificando a paixão, os impulsos, a sensualidade. Do outro, Elizabete, que representa a razão, a serenidade, a espiritualidade e a segurança. O Ato termina com um Tannhäuser atônito frente à defesa veemente de Elizabete e cônscio da obsessão (maldição?) ditada pela paixão por sua musa. O Landgrave o informa que apenas será perdoado das blasfêmias cantadas se for a Roma com os peregrinos em busca de penitência. Tannhäuser então segue para a cidade eterna em busca do perdão do Papa.
Tannhäuser confessa suas estripulias com Vênus ao Papa Urbano IV. Ferdinand von Piloty (1828-1895).
 
No início do terceiro Ato, meses depois da partida de seu amado, encontramos Elizabete procurando Tannhäuser, em vão, entre os peregrinos que regressavam de Roma. É Wolfram que o encontra aos pés do Venusberg. Em uma ária de uma beleza estrondosa, vemos Tannhäuser contar ao amigo a recusa do Papa em perdoá-lo por sua cumplicidade com Vênus. Seria mais fácil crescerem folhas no cedro papal que Tannhäuser ser salvo, teria dito o dito santo Padre. O poeta se desespera. Confuso, clama pelo amor de Vênus e, em seguida, pelo de Elizabete. As duas aparecem-lhe e se personificam, se mesclam, posam juntas, lado a lado, para o deleite do artista. Sua pintura nunca pareceu tão magnífica. Instintivamente, Elizabete compreende que, ao aceitar Vênus e a sensualidade, ela celebra também uma parte dela mesma da qual ainda não havia se percebido, mas que sempre esteve presente. Neste momento, o coro representando os peregrinos anuncia o milagre: folhas brotaram no cetro papal...
No avião de volta ao Recife, com as informações do libreto de Wagner que usei aqui e com minha memória enovelando-se em minhas impressões, tento vencer algum tempo das longas horas de voo com essas reminiscências que, nem de longe, se pretendem uma avaliação estética formal ou especializada do espetáculo que vira. Em verdade, apenas uma secreção mental a mais para este espaço de Blog e para as dores da alma que atormentaram Tannhäuser (e o próprio Wagner) e tantos homens e mulheres daquele e deste tempo. Seria uma interpretação ingênua da dramaturgia da Ópera Tannhäuser, entretanto, a confrontação entre o amor carnal e espiritual ou entre o pecado e a santidade. As esferas desses amores não estão de maneira alguma em pólos opostos. Aceitar ou vivenciar um deles não implica, necessariamente, em rejeitar o outro, o que os torna, dessa maneira, dialeticamente ligados, como diria uma psicanalista. Neste sentido, A natureza do amor (e da arte), tal como apresentada nessa bela obra, continua um tema de ampla, apaixonante e infindável discussão. O espetáculo, por fim, foi ótimo.

domingo, 9 de outubro de 2011

O Barão Trepador


Li há poucos dias, edição 2009 da Companhia das Letras com tradução de Nilson Moulin, meu único romance de Italo Calvino. Chama-se O Barão nas Árvores. Gosto mais como o chamaram em Portugal (O Barão Trepador) ou na Itália (Il Barone Rampante), de qualquer maneira o título chamou-me a atenção e o interesse pela leitura. Como assim, nas árvores? Calvino escreveu uma divertida historieta sobre o filho primogênito do Barão de Rondó (Cosme Chuvisco de Rondó) que, um dia desses (15 de junho de 1767), cansado de seguir os ditames moribundos da família de nobres (a fantástica história se passa no século XVIII, surgimento do Iluminismo e eclosão da Revolução Francesa) decide subir às arvores e de lá nunca mais descer. Como o pequeno Cosme podia viver, afinal, em uma situação na qual “tinha-se que comer frango com talheres” enquanto o Barão sonhava se tornar Duque de Penúmbria e continuar a usar sua peruca à Luís XIV? Apesar de não ser, em minha opinião, um grande livro, o romance é de leitura agradável e inspiradora, portanto, recomendável. No entanto, por outro aspecto não literário, digamos, escrevo essa secreção. 

Como engenheiro agrônomo, chamou-me a atenção as “árvores” do título (e aqui deveria agradar-me mais o título da edição brasileira da qual reclamei anteriormente...) e como o escritor as descreveria. Para meu contentamento o fez muito bem, não apenas literária, mas também botanicamente falando.  Talvez uma importante parcela disso se deva ao fato de que Ítalo Calvino foi filho de dois cientistas ligados à área. O pai era agrônomo (o escritor nasceu em Cuba – e não na Itália, como pensam muitos - exatamente porque lá estava o pai a chefiar uma estação de pesquisa agronômica) e a mãe, botânica. O Próprio Calvino, aliás, estudou agronomia em Turim, quando, com a eclosão da Segunda Guerra, abandona a Faculdade para se engajar na resistência ao Nazismo. Depois da Guerra, doutora-se em Letras e torna-se um dos mais importantes escritores italianos do Século XX. 

Voltando às árvores, leio delicadas impressões botânicas do escritor que não me passaram despercebidas, enquanto estudioso de anatomia e fisiologia de plantas. Por exemplo, quando descreve uma das árvores preferidas do barãozinho:

Cosme acha-se sob o pavilhão de folhas, vê transparecer o sol em meio às nervuras, os frutos verdes que encorpam aos poucos, aspira o látex que rumoreja em torno dos pedúnculos. A figueira domina quem nela sobe, impregna com seu humor borrachento, com o zumbido dos zangões. (Pág. 77)

Figueira (Ficus benjamina)

O autor também descreve a Apicultura e a hidráulica, temas de disciplinas na faculdade de agronomia onde estudei. O tio de Cosme era fascinado por esses estudos, especialmente a Apicultura, que Calvino descreve na página 88:

Cosme acabou por convencer-se que a presença do cavaleiro estava ligada às abelhas e que para localizá-lo era preciso seguir o voo delas. De que modo? Ao redor de qualquer planta florida existia um difuso zunir de abelhas; era preciso não se deixar distrair por percursos isolados e secundários, mas seguir a invisível via aérea em que o vaivém das abelhas se adensava, até lograr ver uma nuvem espessa erguer-se atrás de uma sebe como fumaça. Lá embaixo ficavam as colmeias...

                Sobre Hidraúlica e Irrigação, Cosme, também com a ajuda do cavaleiro seu tio, tivera a “ideia de um aqueduto pênsil, com um conduto sustentado justamente por galhos de árvores, que permitiria alcançar a vertente oposta do vale, seco, e irriga-lo”. Infelizmente não se viu tal empreendimento ser levado a cabo em Penúmbria, tal como o tio tinha visto nas “...belíssimas, bem irrigadas terras do Sultão, hortas e jardins em que ele deveria ter sido feliz...” (página 93).  

                Estejam certos: tal como disse no primeiro capítulo do livro, Cosme nunca desceu das árvores. O simbólico gesto do pequeno barão ante a uma época mutante, o fantástico da história de um homem que vive sobre as copas das árvores e de lá tem uma visão única do mundo, a agradável e leve escrita de Calvino e, para mim, temas que me são tão caros usados como metáforas de um novo tempo de utopia valeram a leitura.  


terça-feira, 4 de outubro de 2011

La Troisième Fois

Foto: Clístenes Nascimento

Manhã correndo pelo Lac de Saint-Mandé, tal como faço na Beira-Rio. Esse mundo pequeno que carregamos dentro de nós. Os trabalhadores idosos desmontam as grades da maratona de ontem. Alguns falam árabe no país dos franceses, tão exilados de suas pátrias e costumes. A senhora apanha com o saquinho plástico a cagada prateada da cadelinha. As mães em carinhos aos filhos loirinhos, mestiços, negros, asiáticos... Urgente ajudar a mulher a descer com a cama-usada-recém-comprada os três andares em espiral. Parecia satisfeita, com a cama e a ajuda, ao deixar-me um bonne journée no qual acreditei. O corpo suado e a ducha fria. As horas se perfumando de sabonete. A maninha fazendo bolo de milho e brigadeiros no escondido da cozinha. A internet encurtando o tempo e a distância, o ínfimo do tempo real, imediato, que me presenteia vida no simulacro de matar a saudade. Não se recebe mais cartas. Não recebi cartas neste dia. Recebi e-mails, mensagens, posts, canções, felices cumpleaños, bon anniversaire e happy birthday. Não exalavam o cheiro das cartas, essas mensagens na tela, mas o que nos promete esse admirável mundo novo que pudéssemos desacreditar? Nas cartas podia-se sentir a pressão do pulso, o nervosismo, a ansiedade. As cartas nos contavam mais do que estava escrito. A pressão ou a lentidão com que era produzida a sílaba, se vacilante ou segura, era a mão que escrevia. Mesmo assim não posso deitar-me em queixas aos novos tempos. Algumas mensagens, seja por que via são enviadas, convertem-se em únicas pela indelével presença humana, afetiva, delicada de quem as escreve, cola, copia, grava, deleta, muda a fonte, anexa, repensa e reescreve. Os gestos não vistos, não sentidos, mas imaginados. Então lhe acha boa para ser livre e encontrar o destino na distância que viajam os bits. Bel Canto, onde cantores líricos servem os pratos e as árias. Verdi e Carré d’agneau. Puccini e mi-cuit au chocolat. Aromas de vin rouge e sons de piano. As luzes da mais bela cidade do mundo. A presença e a ausência dos que amamos. Esse mundo imenso que carregamos dentro de nós.