segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O Calcanhar e a Palavra



Poucas vezes, diria pouquíssimas, viu-se o esporte que une essa nação continental ser tão bem representado dentro e fora dos campos. Um dos idealistas de uma época de magia do futebol que precisa ser reinventada. Sua magnífica geração, que culminou com o maior time de futebol já criado (a seleção de 82), foi talvez a mais injustiçada da história quando fomos desclassificados (o mundo perplexo...) pela Itália. A derrota serviu de desculpa para a feiura da seleção de 94. Futebol burocrático,  campeão sem encantamento, que alguns chamaram de evolução tática. Preferia o sonho sonhado por Telê e materializado nos pés de Zico, Falcão e Sócrates. Outro tempo. E o sonho foi além dos campos. A democracia corintiana: o futebol pensado muito além dos porões dos cartolas, onde a paixão vira, somente, negócio e negociata. Utopia e exemplo em um período político ainda tão obscuro, com tantos ecos recentes do passado de exceção. Coragem. A centelha de esperança, essa da arte com a bola e da política nas ruas, da transformação social, punho levantado, após o gol e nas praças, pelas Diretas Já. O calcanhar e a palavra. Armas quentes desse magistral atleta politicamente engajado. Que as brincadeiras de Neymar, quem dera, pudessem nos salvar em um mundo no qual Ronaldo e Ricardo Teixeira se abraçam. O ex-jogador exuberante e o que há de mais feio no esporte, o laranja perfeito para o simuclaro de uma copa de interesses entre os quais o esporte e seu poder de conciliação nacional são o menos importante. O futebol como fantasia da recriação do mundo, do país, da beleza, mais uma vez relegado a segunda plano. Como poucos, como pouquíssimos, farão ainda mais falta o calcanhar e as opiniões rentes do Dr. Sócrates.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

The Bucket List

One more little thing for the Bucket List (things to do before you die): A Balloon Flight... A few days to go!

sábado, 26 de novembro de 2011

Um Corpo que Cai


Riding with Death, Jean-Michel Basquiat, 1988
Nunca imaginei que cairia daquela varanda. Agora estou aqui, tentando lembrar e reviver cada segundo como se com isso conseguisse desfazer o momento infeliz, estúpido, no qual cometi o deslize. Desequilíbrio. Morrer é foda! Ainda mais dessa maneira ridícula que me aconteceu. Sim, adianto-lhes para que não fiquem apreensivos ou pensem que ao final da minha fala me verão voltando para casa, comprando pão e leite, como se eu fosse viver mais um dia, mais uma noite além dessa manhã: estou morto agora, nesse momento que exponho os derradeiros pensamentos que me cruzaram a cabeça. Cabeça, aliás, que está em estado deplorável.  A queda de seis andares a estropiou quase por completo. Eu mesmo se mirasse minha cara arrebentada dificilmente me reconheceria. Enquanto caía senti certo prazer no planar entre os andares. Mas isso não durou mais que milésimos de segundo, pois me lembro do temor odioso quando me apercebi que iria arrebentar no chão como um saco de cimento caindo do céu. O dia estava claríssimo naquela manhã. Antes de adentrar a varanda, elevar-me naquele banquinho, e bater o prego para o quadro que eu não penduraria, vi as pessoas correndo na praça lá embaixo. Fazia tempo que me prometia que seria uma delas, voltaria a caminhar, pararia de fumar, diminuiria a bebida e melhoraria a dieta. Não faria mais nada disso, do mesmo modo que não veria aquele quadro pendurado na parede da varanda que dava vista para a mesa de jantar. As mãos, agarradas naqueles inúteis martelo e prego, não tiveram tempo nem reflexo para se agarrarem em nada que evitasse o desfecho da minha morte. Segundos eternos se passariam até que eu me esparramasse arrebentado na poça de sangue que se formou sob meu corpo franzino. Apesar do corpo pouco, até que fiz um bom barulho... Lembro-me de um som seco, indefinido, de qualquer coisa que caísse de altura elevadíssima. Ainda vivi alguns minutos. Não tenho muita noção de quanto. Podem ter sido uns dois, três minutos... Dez? Quinze? Segundos? Não sei... Na iminência da morte, o tempo assumiu outra dimensão na qual, agonizante, tive pouca ideia de transcurso. Lembro-me do gosto de sangue. Logo após a batida foi a primeira sensação: o sangue inundando a boca. Nem mesmo os ossos que senti quebrar, os dois braços que tentaram ridícula e inocentemente amortizar o tombo, e as costelas, que senti estilhaçando em uma sequência, foram mais percebidos que a profusão do gosto sanguíneo, salgado, viscoso... Vi, ainda que muito turvado, as mães fechando os olhos das crianças para que não vissem o horror que era eu, estatelado ali na calçada. Vi também que alguns não tinham o menor pudor. Olhavam-me e tentavam apreender cada detalhe da minha desgraça. Não lhes interessaria que eu tivesse conseguido afixar o quadro na parede. A minha morte, nessa perspectiva da inutilidade e no olhar curioso ou indiferente dos que viveriam mais que eu, parecia ainda mais esdrúxula. Alguém deve ter chamado uma ambulância. Espero que sim, pensei. Alguma esperança ainda me restaria. Mas não ouvi sirenes. Se vierem, não chegarão antes de minha morte. Isso eu sei.

domingo, 20 de novembro de 2011

A Rede Vespa

Não há nada que um cubano goste tanto como guardar segredos.
 Gabriel Garcia Márquez


O Brasil não é um país para amadores, dizia Tom Jobim. A frase poderia ser muito apropriada também para Cuba, um país que parece perdido (ou parado) no tempo graças a um anacrônico bloqueio e as ainda poucas concessões do próprio governo cubano. Abertura sem perder as conquistas da Revolução em educação, saúde, esporte e cultura será o maior desafio que o país caribenho tem a enfrentar. O cenário parece ainda mais difícil para um país declaradamente comunista frente a um mundo capitalista em crise, a iminente morte de seu Comandante en Jefe (sem um substituto com o mesmo carisma entre seu povo) e a ainda sempre influente oposição da comunidade de cubanos exilados na Flórida, a qual nenhum aspirante a Presidente estadunidense pode iniciar a campanha sem beijar as mãos. Um país e uma situação, enfim, de difícil análise e previsibilidade de desdobramentos, mas a caminho de irrefreáveis mudanças nos próximos anos. A imagem do país, para várias gerações de brasileiros, está intimamente ligada A Ilha, de Fernando Morais.  O livro, que se tornou um verdadeiro ícone da esquerda nos anos 70, teve sua primeira edição em 1976, seguida de 30 reimpressões e uma atualização em 2001. À época do lançamento, a Guerra Fria estava no auge e os passaportes brasileiros estampavam “Não é válido para Cuba”. Naquela atmosfera, o autor conduziu três meses de entrevistas no país e nos deu a primeira ideia mais apurada do que se passava na Ilha. O polêmico livro foi acusado de fazer apologia da Revolução Cubana, tendo sido apreendido pela polícia em dois estados. O autor retorna ao tema Cuba com seu mais recente livro (Os Últimos Soldados da Guerra Fria, Companhia das Letras, 2011, 412 p.) que acabo de ler. O livro conta, de maneira agradavelmente romanceada, a saga de 14 agentes secretos cubanos (doze homens e duas mulheres) que são enviados à Flórida no início dos anos 90 como supostos desertores ou exilados do Regime cubano. As dificuldades materiais (devido aos parcos recursos financeiros disponibilizados por Cuba) e o sofrimento desses agentes, que precisaram abandonar família e amigos, sendo tratados como desertores pelos que não sabiam as suas verdadeiras histórias, são humanamente relatados pelo autor. O objetivo deste grupo (batizado de Rede Vespa) era debelar tentativas de ataques terroristas financiados por cubanos anticastristas contra pontos turísticos de Cuba. Depois da queda da URSS e as dificuldades decorrentes para o país, como a perda de produtividade das lavouras de cana, o turismo passou a ser a principal atividade econômica de Cuba. Deste modo, os ataques pretendiam mostrar que não era seguro fazer turismo na Ilha e, assim, atingir diretamente a economia e o governo de Fidel Castro. “A opinião pública internacional precisa saber que é mais seguro fazer turismo na Bósnia-Herzegovina do que em Cuba”, alardeavam líderes anticastristas na Flórida. O livro detalha ainda aspectos pitorescos da relação entre EUA e Cuba, como a admiração de Bill Clinton por Gabriel Garcia Márquez, o que permitiu o escritor colombiano ser portador de importantes documentos entre os países, e o oportunismo do governo cubano ao liberar doentes psiquiátricos e criminosos para o exílio quando Jimmy Carter resolveu reeditar a chamada Lei do Ajuste (permissão para que qualquer cubano que pisasse solo americano tivesse asilo político e status de residente permanente). O trabalho de pesquisa e entrevistas empreendidas por Fernando Morais torna o livro uma peça jornalística de elevado valor, que se complementa com uma narração com bons recursos literários que tornam a leitura bastante fluente e agradável, lembrando mais um romance policial que uma reportagem. Uma fonte a mais para aqueles que se interessam pela história e os destinos daquele país.  

terça-feira, 15 de novembro de 2011

O Caldo Estratosférico

Foto: Alessandra Blanco

O caldo de dona Rosa é coisa rara... A primeira vez que o provei cem anjos tocaram trombetas no céu e duzentas virgens perderam a cabeça e a noção. Tem um sabor divino o caldo de aratu de Dona Rosa. Na segunda colherada que dei apareceu um clarão no meio das trevas e um cometa de calda gigante atravessou a estratosfera. Choveu ouro em pó das alturas celestiais. Com uma gotinha de pimenta, então, foi à perdição: parecia a Beija Flor entrando na avenida... Cada sorvida era som de cuíca de escola campeã. Alguém pode achar que é exagero, essa minha descrição. Vá lá a Tamandaré e prove. Tal como o Rock in Rio ou um show dos Stones, farei uma camiseta “Eu Fui”.


O Fluxo simétrico da memória

A Persistência da Memória (Salvador Dali, 1931)

 “Agora, à distância, vejo melhor as coisas passadas”, ela disse. A memória, então, parecia uma região cerebral entrecortada por diferentes acidentes geográficos. Pequenos montes e vastas depressões. Altas montanhas e estreitos vales. A memória era um espaço. Apenas no passado podemos ver o tempo, o nosso tempo vivido, como um espaço. O que foi mais significativo e mais tocou a emoção, ficou consolidado como uma cordilheira nessa região mnemônica. Se algo se perdeu entre as conexões sinápticas, formaram-se vales onde correm rios de esquecimento. Continuo ouvindo-a e não consigo associar fatos, datas e acontecimentos da mesma forma e na mesma sequência. As impressões momentâneas daqueles episódios na vasta planície de sua memória aparecem distorcidas na minha mente. Há apenas um tempo real, no presente, que é o tempo no qual se recorda. É confuso o presente, não tem noção espacial, geográfica, cerebral. Não sabe ainda o que ficará gravado ou será esquecido. A erosão ainda não correu ventos e águas no presente, não moldou as superfícies que, por fim, me permitirão recontar, reinventar, essa história e moldar os contornos difusos das identidades, das intenções, dos gestos. Busco os dados, tento refazer o passado como ela o registrou visível na minha memória só minha, tão pessoal, intransferível... Inútil. Outras são as marcas que sulcaram a terra das minhas recordações e me perco no meu labirinto de lembranças, sem delinear o espaço onde nossas memórias se encontrariam e caminhariam juntas, até o momento presente. Tento reconstruir uma memória do outro, mas acabarei criando uma personagem a qual darei vida e colocarei mentiras na boca. Inventarei fatos e teias, evocarei o passado como um  monstro que trarei à luz com essas minhas verdades inventadas. 

Recordo que era domingo, acho. Poderia ser segunda-feira. O dia que a conheci seria útil de qualquer maneira, pois me lembro do vestido colorido e das alegrias daquele outro tempo. O espaço aqui se delineava como uma linha reta ou sinuosa, dependendo de que maneira eu decidisse conectar os fatos desde aquele primeiro momento, o momento que a vi. Do mesmo modo, seguindo essa linha imaginada no tempo e no espaço, eu poderia fazer o tempo correr para trás. Assim, eu a veria agora se transformando no regredir dos anos em algo que eu desconhecia até então, no que ela não é hoje, aquela outra pessoa que habita o pretérito. A ideia absurda, essa da quântica, de que o tempo pode seguir seu fluxo do passado para o presente ou do presente para o passado, me fazia agora transmutá-la desse objeto tangível, do qual conheço humores e cheiros, no algo que ela era naquele primeiro instante: um sorriso e um vestido florido, apenas. Talvez nessa perspectiva que a Física me concede, eu desejasse mudar ou alterar o nosso passado. Assim eu poderia, quem sabe, dar a cada acontecimento o seu devido valor, nem mais nem menos. Talvez assim eu pudesse ter criado mais montanhas e cordilheiras onde reinariam as recordações que a geografia do meu cérebro se regozijaria em trazer-me a tona. Correriam os rios do esquecimento nos vales sulcados dos eventos tristes que essa minha máquina do tempo quântica poria em sequência ordenada, um fato atrás do outro, na ordem que eu bem entendesse. “É você? Onde está?”. Escrutino o passado, invoco os deuses e os fantasmas da memória. Eles respondem, sempre. Mas tenho dúvida em alterar seus significados e suas danças ao redor do fogo. Tenho apenas as recordações, essa campina imensa onde se espraiem feridas e bálsamos. Reluto em visualizar outra dimensão, que há ou que se imagina possível. Vejo os cacos se espalharem pelo chão, nunca os vi se juntarem e reconstituírem o vaso novo onde deitarei as flores do passado que se reverte. Tento ter lembranças do futuro, abolindo a simetria do fluxo temporal. Continuo ouvindo-a derramar sua memória na minha percepção. A partir dela, do concreto que é ela, posso ver alguém esticando a língua da relatividade e, por fim, sentir o fluxo do tempo e o espaço da minha memória ser povoado pelas verdades inventadas que regariam flores amarelas.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Garotas de Meia Calça (Bukowski)

...circulo com o meu carro
espiando suas pernas
satisfeito por saber que jamais farei
parte nem de seus paraísos nem de
seus infernos. Mas os batons escarlates naquelas tristes bocas
que esperam! Seria delicioso
beijar cada uma delas, uma vez que fosse, por completo,
mas o ônibus as pegará primeiro.

domingo, 30 de outubro de 2011

A Semente Urgente


Foto e cozinha: Clístenes Nascimento
 O molho esperaria. Havia esperado até hoje. Até esse domingo, até o corte da faca... A semente urgente, essa não esperou. Ficou enfastiada do escuro do fruto. Queria ser planta e de molhos não sabia nada. A semente impaciente brotou no escuro do fruto. Semente-esperta, danada, não se fez de rogada: brotou no escuro do fruto! Queria ser feliz, eu acho...

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Super Homem, a canção

Terremotos com 8.8 na escala Richter não sabem nada sobre alterar a rotação terrestre... Saudade de Superman, "mudando como um Deus o curso da história por causa da mulher". Salve Gil, na bela analogia, a nos trazer Nietzsche e lembrar-nos que ser (apenas) Homem já não basta...

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Anabella


               Eu sempre desacreditei nestas coisas do além, muito além de qualquer crença que porventura quisesse ter. Mas agora recebo essa oferta irresistível por e-mail. Veja que não falo dessas ciganas com vestidos seborrentos que agarram a mão da gente no meio da rua que quase arrancam um dedo... Deixa eu ler seu futuro, moço... Argh!! Não, essa me chegou on line, toda moderna e cheia dos bits estelares, conseguindo escapar com sua energia positiva da minha caixa de spam. Coroa bonita, a danada da vidente (Ah, eu alguns anos mais velho...). E, ainda por cima, uma intelectual (Professora em artes e ciências adivinhatórias, astróloga, numeróloga, especialista mundial em tarô e runas). Aposto que tem até alguns livros publicados por alguma editora com corpo editorial formado por desencarnados de Harvard ou da Sorbonne. E você não sabe o melhor: a sua grande vidência 100% GRÁTIS! Madame Anabella me garantia, com seus belos olhos castanho-hipnose. Aliás, não apenas ela. No banner estilizado com cortina vermelha e dedinho de unha também vermelha sobre uma carta do Arcano Maior, havia ainda um casal de Curitiba (lindo eles abraçadinhos) asseverando que voltamos a ser felizes no nosso casamento. Veja que isso não é coisa fácil de conseguir sem a ajuda de uma vidente... E o mais curioso (foi isso que me deixou intrigado e com meu grau de crença nas alturas celestiais) é que de alguma maneira ela sabia meu nome. Clístenes, mude a sua vida agora com os conselhos de Anabella. Ou seja, a mensagem era realmente para mim!! Quando ela perguntou se eu desejava amor, dinheiro e sucesso (não sei porque ela considerou exatamente essa ordem e se eu poderia alterá-la ou interrelacionar as prioridades...), como eu poderia me negar a ouvir os seus conselhos? Quem não quer essas dádivas terrenas em qualquer ordem que seja? Eu, que sempre disse aos meus pobres pós-graduandos que a ciência, apesar de sua tosca e falha aproximação do que chamaríamos de verdade, é a melhor maneira de prever o futuro que temos, senti cada modelo matemático estremecer ante a possibilidade de que um jogar de cartas, uma voz do além, uma avaliação de fezes, uma tremidinha de ombros valha mais do que qualquer estatística paramétrica. Ela pediu e eu obedeci cegamente (me sentia em uma conexão astro-telepática com Anabella....): clique aqui. Como sabia que ninguém descobriria minha infidelidade racionalista, pois fui avisado que era 100% confidencial, fui em frente. Cliquei. Como pedido pelo e-mail de confirmação, validei minha vidência gratuita. Que coisa moderna, limpinha, essas clarividências pós-modernas. Não posso nem me lembrar do vestidinho seborrento da cigana na rua... Segui com o mouse ao meu espaço privativo onde, com a mão ainda trêmula pelo que o futuro me reservava, Anabella muda o tom da conversa (embora os seus cabelos continuassem impecavelmente penteados): Se, apesar de meus esforços, você não ficar 100% satisfeito com meu trabalho espiritual, visite: www.payandpray.com para pedir o seu dinheiro de volta (30 dias de garantia). Fiquei com o meu recém-desperto esoterismo um pouco abalado, confesso. Eu sou uma pessoa difícil demais de ficar 100% satisfeito... Vá lá, uns 90% em alguns casos. E essa estória de dinheiro de volta? O cursor titubeou junto com a alma desencantada. O teclado queria, mas a mão negava... Anabella, Anabella... Acabei clicando no xizinho no alto da aba. Fechei Anabella e sua pele diáfano-esotérica da janela do meu navegador. O fluido subliminal que nos unia se desfez. Não adianta. Esse meu ceticismo tem algo de  parapsicopatológico. Vai acabar me matando de descrença ou, pior, me impedindo de alcançar mais rapidamente, pelas vias da iluminação da clarividência, amor, dinheiro e sucesso (em qualquer ordem que seja...).

domingo, 16 de outubro de 2011

Tannhäuser: Amor e Arte vão à Ópera


Tannhäuser e Vênus (Otto Knille, 1873)

Uma noite de Ópera em Paris. Certamente alguns torcem o nariz para a música erudita ou balé, por exemplo, como se isso significasse uma clara demarcação de território, mais metido ou superior ao que se chamaria de popular... Outros, torcendo o nariz em sentido contrário, consideram-se por demais sofisticados para se entregarem ao deleite de um sambinha fortuito, desses que dá vontade de balançar a bunda de maneira contida ou desvairada. Como cantaria João Gilberto, “Madame não gosta que ninguém sambe! Pra que discutir com Madame?”. Com a ópera, que me parece tem um lugar de destaque na ideia de que pode ser aborrecida e indecifrável, acontece esse tipo pré-conceito. De fato, exige alguma atenção, mas a recompensa poderá ser deveras agradável para os de ouvidos, olhos e espírito abertos.
Paris tem duas magníficas casas para ópera que tive a oportunidade de conhecer. A Ópera Garnier, belíssima obra de arte que demorou 15 anos (1860-1875) para ser construída, sob os auspícios de Napoleão III, e a Ópera Bastille, inaugurada em 1989 e que é uma belezura de arquitetura moderna, acústica e conforto. Nesta assisti semana passada uma montagem da Ópera Tannhäuser, de  Richard Wagner, espetáculo dividido em três atos, cantado em alemão e com quatro horas de duração. Pode parecer árdua a tarefa. Não me foi nem um pouquinho. Havia legendas em francês, o que me permitiu acompanhar adequadamente os versos. A música de Wagner, claro, magnífica. Os cantores (tenores, barítonos, sopranos, baixos) preencheram a alma e as horas com uma beleza colossal. Os cenários, o figurino, a dança, a encenação. O conjunto, a meu ver, faz da ópera o mais abrangente dos espetáculos. Nem por isso, e por demais o contrário disso, inacessível. 

Ópera Bastille, Paris.


A história contada parece simples, tocante e, apesar de escrita e composta no século XIX (a primeira apresentação foi em 1845, em Dresden, Alemanha), é bastante atual como toda grande obra. Wagner coloca Tannhäuser deparando-se com as contradições de seus sentimentos e a busca de inspiração para sua arte. Um parêntese aqui para detalhar que o artista, que na lenda original germânica é um poeta, é apresentado por Wagner também como artista plástico e cantor. Um artista múltiplo do futuro, segundo o diretor de cena do espetáculo, Robert Carsen. A busca do artista é representada pelo amor de duas mulheres (ou duas formas de amor). Uma delas é a própria Vênus, que como sabido é de induzir qualquer cristão ou ateu à devassidão do amor carnal. Com Tannhäuser não seria diferente. Vênus é a inspiração dionisíaca para sua arte, representada pela pulsão sexual que pode ser, ao mesmo tempo, uma benção e uma maldição. O primeiro Ato deixa essa contradição clara na tentativa desesperada do artista em retratar, apreender, sua musa na pintura. O pincel, a tela, o palco, a cama, a alma do poeta jorram vermelho. Há algo de Prometeu aqui, na busca do artista de criar algo maior do que é dado ao ser humano conhecer. Neste primeiro Ato vemos o artista completamente dominado pela beleza de Vênus, suplicando-lhe que seja sua musa e o ame como homem. A deusa da beleza promete-lhe então grandes prazeres e inspiração se ele permanecer com ela no Venusberg, a montanha onde habita, supostamente escondida dos mortais. Ao que parece, entretanto, após deleitar-se um ano em luxúria com a deusa, Tannhäuser sente-se incompleto, preso ao amor sensual de Vênus, e clama por sua liberdade. Vênus fica uma arara e diz-lhe que se ele escolher descer à Terra nunca mais lhe será permitido voltar. Apesar da DR com a divindade e da tentação quase irresistível (lembremos que o poeta estava em lida com a própria deusa do amor, representada nesta montagem, em corpo nu, pela mezzo-soprano Sophie Koch), o pobre atormentado reúne forças para deixar Venusberg. Ao abandonar sua musa, sozinho e se remoendo dos pecados do passado, Tannhäuser se junta a peregrinos penitentes. Nisso, aparece-lhe o amigo Wolfram que, surpreendido, quer saber por onda andava. Tannhäuser se recusa a contar-lhe que passou o tempo todo de desaparecimento se refastelando nos braços de Vênus. No entanto, decide retornar para sua cidade com Wolfram quando este lhe recorda o amor de Elizabete, a sobrinha do Landgrave (título de nobreza alemão), e seu amor sem fim por ele. Outro parêntese para dizer-lhes que Wolfram, em segredo, é apaixonado por Elizabete e parece de um ato digno de menção ao conduzir o amigo ao encontro do amor que ele próprio desejava...
O segundo Ato iniciou com uma linda introdução da orquestra e um belíssimo dueto do tenor Christopher Ventris e da soprano Nina Stemme no reencontro de Tannhäuser e Elizabete. Wolfram, coitado, os assiste sem ser notado. O Landgrave decide promover uma festança e promete a mão de Elizabete ao vencedor de um concurso artístico que versará sobre a quintessência, a verdadeira natureza, do amor. Aqui os convidados são representados por um coro, elegantemente vestido, que adentra o cenário e participa da festa. Wolfram é o primeiro a se apresentar e faz um tributo de amor idealizado à Elizabete. Tannhäuser, por sua vez, ainda com corpo e alma possuídos por Vênus apresenta um verdadeiro hino aos prazeres carnais. Os convidados se escandalizam, dizem impropérios e exigem que ele abandone o salão. Elizabete, no entanto, entendendo os tormentos do amado (e, pensei eu, o perpétuo conflito interior do artista ao tentar dar forma à sua criação) os interrompe declarando que eles não têm o direito de julgá-lo. Aqui Elizabete parece aceitar dividir o amor de Tannhäuser com sua musa. Em verdade, com sua Arte (personificada em Vênus), uma amante exigente que ocupará sempre o primeiro lugar de suas atenções. Neste momento da Ópera aparece a representação dos amores do artista. De um lado Vênus, personificando a paixão, os impulsos, a sensualidade. Do outro, Elizabete, que representa a razão, a serenidade, a espiritualidade e a segurança. O Ato termina com um Tannhäuser atônito frente à defesa veemente de Elizabete e cônscio da obsessão (maldição?) ditada pela paixão por sua musa. O Landgrave o informa que apenas será perdoado das blasfêmias cantadas se for a Roma com os peregrinos em busca de penitência. Tannhäuser então segue para a cidade eterna em busca do perdão do Papa.
Tannhäuser confessa suas estripulias com Vênus ao Papa Urbano IV. Ferdinand von Piloty (1828-1895).
 
No início do terceiro Ato, meses depois da partida de seu amado, encontramos Elizabete procurando Tannhäuser, em vão, entre os peregrinos que regressavam de Roma. É Wolfram que o encontra aos pés do Venusberg. Em uma ária de uma beleza estrondosa, vemos Tannhäuser contar ao amigo a recusa do Papa em perdoá-lo por sua cumplicidade com Vênus. Seria mais fácil crescerem folhas no cedro papal que Tannhäuser ser salvo, teria dito o dito santo Padre. O poeta se desespera. Confuso, clama pelo amor de Vênus e, em seguida, pelo de Elizabete. As duas aparecem-lhe e se personificam, se mesclam, posam juntas, lado a lado, para o deleite do artista. Sua pintura nunca pareceu tão magnífica. Instintivamente, Elizabete compreende que, ao aceitar Vênus e a sensualidade, ela celebra também uma parte dela mesma da qual ainda não havia se percebido, mas que sempre esteve presente. Neste momento, o coro representando os peregrinos anuncia o milagre: folhas brotaram no cetro papal...
No avião de volta ao Recife, com as informações do libreto de Wagner que usei aqui e com minha memória enovelando-se em minhas impressões, tento vencer algum tempo das longas horas de voo com essas reminiscências que, nem de longe, se pretendem uma avaliação estética formal ou especializada do espetáculo que vira. Em verdade, apenas uma secreção mental a mais para este espaço de Blog e para as dores da alma que atormentaram Tannhäuser (e o próprio Wagner) e tantos homens e mulheres daquele e deste tempo. Seria uma interpretação ingênua da dramaturgia da Ópera Tannhäuser, entretanto, a confrontação entre o amor carnal e espiritual ou entre o pecado e a santidade. As esferas desses amores não estão de maneira alguma em pólos opostos. Aceitar ou vivenciar um deles não implica, necessariamente, em rejeitar o outro, o que os torna, dessa maneira, dialeticamente ligados, como diria uma psicanalista. Neste sentido, A natureza do amor (e da arte), tal como apresentada nessa bela obra, continua um tema de ampla, apaixonante e infindável discussão. O espetáculo, por fim, foi ótimo.