Poucas vezes, diria pouquíssimas,
viu-se o esporte que une essa nação continental ser tão bem representado dentro
e fora dos campos. Um dos idealistas de uma época de magia do futebol que
precisa ser reinventada. Sua magnífica geração, que culminou com o maior time
de futebol já criado (a seleção de 82), foi talvez a mais injustiçada da
história quando fomos desclassificados (o mundo perplexo...) pela Itália. A
derrota serviu de desculpa para a feiura da seleção de 94. Futebol burocrático,
campeão sem encantamento, que alguns chamaram de evolução
tática. Preferia o sonho sonhado por Telê e materializado nos pés de Zico,
Falcão e Sócrates. Outro tempo. E o sonho foi além dos campos. A democracia
corintiana: o futebol pensado muito além dos porões dos cartolas, onde a paixão
vira, somente, negócio e negociata. Utopia e exemplo em um período político
ainda tão obscuro, com tantos ecos recentes do passado de exceção. Coragem. A
centelha de esperança, essa da arte com a bola e da política nas ruas, da transformação
social, punho levantado, após o gol e nas praças, pelas Diretas Já. O calcanhar e a palavra. Armas quentes desse magistral
atleta politicamente engajado. Que as brincadeiras de Neymar, quem dera,
pudessem nos salvar em um mundo no qual Ronaldo e Ricardo Teixeira se abraçam. O
ex-jogador exuberante e o que há de mais feio no esporte, o laranja perfeito
para o simuclaro de uma copa de interesses entre os quais o esporte e seu poder
de conciliação nacional são o menos importante. O futebol como fantasia da recriação
do mundo, do país, da beleza, mais uma vez relegado a segunda plano. Como
poucos, como pouquíssimos, farão ainda mais falta o calcanhar e as opiniões rentes do Dr.
Sócrates.
segunda-feira, 5 de dezembro de 2011
terça-feira, 29 de novembro de 2011
The Bucket List
One more little thing for the Bucket List (things to
do before you die): A Balloon Flight... A few days to go!
sábado, 26 de novembro de 2011
Um Corpo que Cai
Riding with Death, Jean-Michel Basquiat, 1988 |
domingo, 20 de novembro de 2011
A Rede Vespa
Não há nada que um cubano goste tanto como guardar segredos.
Gabriel Garcia Márquez
O Brasil não é um país para amadores, dizia Tom Jobim. A frase poderia ser muito apropriada também para Cuba, um país que parece perdido (ou parado) no tempo graças a um anacrônico bloqueio e as ainda poucas concessões do próprio governo cubano. Abertura sem perder as conquistas da Revolução em educação, saúde, esporte e cultura será o maior desafio que o país caribenho tem a enfrentar. O cenário parece ainda mais difícil para um país declaradamente comunista frente a um mundo capitalista em crise, a iminente morte de seu Comandante en Jefe (sem um substituto com o mesmo carisma entre seu povo) e a ainda sempre influente oposição da comunidade de cubanos exilados na Flórida, a qual nenhum aspirante a Presidente estadunidense pode iniciar a campanha sem beijar as mãos. Um país e uma situação, enfim, de difícil análise e previsibilidade de desdobramentos, mas a caminho de irrefreáveis mudanças nos próximos anos. A imagem do país, para várias gerações de brasileiros, está intimamente ligada A Ilha, de Fernando Morais. O livro, que se tornou um verdadeiro ícone da esquerda nos anos 70, teve sua primeira edição em 1976, seguida de 30 reimpressões e uma atualização em 2001. À época do lançamento, a Guerra Fria estava no auge e os passaportes brasileiros estampavam “Não é válido para Cuba”. Naquela atmosfera, o autor conduziu três meses de entrevistas no país e nos deu a primeira ideia mais apurada do que se passava na Ilha. O polêmico livro foi acusado de fazer apologia da Revolução Cubana, tendo sido apreendido pela polícia em dois estados. O autor retorna ao tema Cuba com seu mais recente livro (Os Últimos Soldados da Guerra Fria, Companhia das Letras, 2011, 412 p.) que acabo de ler. O livro conta, de maneira agradavelmente romanceada, a saga de 14 agentes secretos cubanos (doze homens e duas mulheres) que são enviados à Flórida no início dos anos 90 como supostos desertores ou exilados do Regime cubano. As dificuldades materiais (devido aos parcos recursos financeiros disponibilizados por Cuba) e o sofrimento desses agentes, que precisaram abandonar família e amigos, sendo tratados como desertores pelos que não sabiam as suas verdadeiras histórias, são humanamente relatados pelo autor. O objetivo deste grupo (batizado de Rede Vespa) era debelar tentativas de ataques terroristas financiados por cubanos anticastristas contra pontos turísticos de Cuba. Depois da queda da URSS e as dificuldades decorrentes para o país, como a perda de produtividade das lavouras de cana, o turismo passou a ser a principal atividade econômica de Cuba. Deste modo, os ataques pretendiam mostrar que não era seguro fazer turismo na Ilha e, assim, atingir diretamente a economia e o governo de Fidel Castro. “A opinião pública internacional precisa saber que é mais seguro fazer turismo na Bósnia-Herzegovina do que em Cuba”, alardeavam líderes anticastristas na Flórida. O livro detalha ainda aspectos pitorescos da relação entre EUA e Cuba, como a admiração de Bill Clinton por Gabriel Garcia Márquez, o que permitiu o escritor colombiano ser portador de importantes documentos entre os países, e o oportunismo do governo cubano ao liberar doentes psiquiátricos e criminosos para o exílio quando Jimmy Carter resolveu reeditar a chamada Lei do Ajuste (permissão para que qualquer cubano que pisasse solo americano tivesse asilo político e status de residente permanente). O trabalho de pesquisa e entrevistas empreendidas por Fernando Morais torna o livro uma peça jornalística de elevado valor, que se complementa com uma narração com bons recursos literários que tornam a leitura bastante fluente e agradável, lembrando mais um romance policial que uma reportagem. Uma fonte a mais para aqueles que se interessam pela história e os destinos daquele país.
terça-feira, 15 de novembro de 2011
O Caldo Estratosférico
Foto: Alessandra Blanco |
O caldo de dona
Rosa é coisa rara... A primeira vez que o provei cem anjos tocaram trombetas no
céu e duzentas virgens perderam a cabeça e a noção. Tem um sabor divino o caldo
de aratu de Dona Rosa. Na segunda colherada que dei apareceu um clarão no meio
das trevas e um cometa de calda gigante atravessou a estratosfera. Choveu ouro
em pó das alturas celestiais. Com uma gotinha de pimenta, então, foi à
perdição: parecia a Beija Flor entrando na avenida... Cada sorvida era som de
cuíca de escola campeã. Alguém pode achar que é exagero, essa minha descrição. Vá
lá a Tamandaré e prove. Tal como o Rock in Rio ou um show dos Stones, farei uma
camiseta “Eu Fui”.
O Fluxo simétrico da memória
A Persistência da Memória (Salvador Dali, 1931) |
“Agora, à distância, vejo
melhor as coisas passadas”, ela disse. A memória, então, parecia uma região
cerebral entrecortada por diferentes acidentes geográficos. Pequenos montes e
vastas depressões. Altas montanhas e estreitos vales. A memória era um espaço.
Apenas no passado podemos ver o tempo, o nosso tempo vivido, como um espaço. O
que foi mais significativo e mais tocou a emoção, ficou consolidado como uma cordilheira
nessa região mnemônica. Se algo se perdeu entre as conexões sinápticas, formaram-se
vales onde correm rios de esquecimento. Continuo ouvindo-a e não consigo
associar fatos, datas e acontecimentos da mesma forma e na mesma sequência. As
impressões momentâneas daqueles episódios na vasta planície de sua memória
aparecem distorcidas na minha mente. Há apenas um tempo real, no presente, que
é o tempo no qual se recorda. É confuso o presente, não tem noção espacial,
geográfica, cerebral. Não sabe ainda o que ficará gravado ou será esquecido. A
erosão ainda não correu ventos e águas no presente, não moldou as superfícies
que, por fim, me permitirão recontar, reinventar, essa história e moldar os
contornos difusos das identidades, das intenções, dos gestos. Busco os dados,
tento refazer o passado como ela o registrou visível na minha memória só minha,
tão pessoal, intransferível... Inútil. Outras são as marcas que sulcaram a
terra das minhas recordações e me perco no meu labirinto de lembranças, sem
delinear o espaço onde nossas memórias se encontrariam e caminhariam juntas,
até o momento presente. Tento reconstruir uma memória do outro, mas acabarei
criando uma personagem a qual darei vida e colocarei mentiras na boca.
Inventarei fatos e teias, evocarei o passado como um monstro que trarei à luz com
essas minhas verdades inventadas.
Recordo que era domingo, acho. Poderia ser segunda-feira. O dia que
a conheci seria útil de qualquer maneira, pois me lembro do vestido colorido e
das alegrias daquele outro tempo. O espaço aqui se delineava como uma linha
reta ou sinuosa, dependendo de que maneira eu decidisse conectar os fatos desde
aquele primeiro momento, o momento que a vi. Do mesmo modo, seguindo essa linha
imaginada no tempo e no espaço, eu poderia fazer o tempo correr para trás. Assim,
eu a veria agora se transformando no regredir dos anos em algo que eu desconhecia
até então, no que ela não é hoje, aquela outra pessoa que habita o pretérito. A
ideia absurda, essa da quântica, de que o tempo pode seguir seu fluxo do
passado para o presente ou do presente para o passado, me fazia agora transmutá-la
desse objeto tangível, do qual conheço humores e cheiros, no algo que ela era
naquele primeiro instante: um sorriso e um vestido florido, apenas. Talvez
nessa perspectiva que a Física me concede, eu desejasse mudar ou alterar o nosso
passado. Assim eu poderia, quem sabe, dar a cada acontecimento o seu devido
valor, nem mais nem menos. Talvez assim eu pudesse ter criado mais montanhas e
cordilheiras onde reinariam as recordações que a geografia do meu cérebro se
regozijaria em trazer-me a tona. Correriam os rios do esquecimento nos vales
sulcados dos eventos tristes que essa minha máquina do tempo quântica poria em
sequência ordenada, um fato atrás do outro, na ordem que eu bem entendesse. “É
você? Onde está?”. Escrutino o passado, invoco os deuses e os fantasmas da
memória. Eles respondem, sempre. Mas tenho dúvida em alterar seus significados
e suas danças ao redor do fogo. Tenho apenas as recordações, essa campina
imensa onde se espraiem feridas e bálsamos. Reluto em visualizar outra dimensão,
que há ou que se imagina possível. Vejo os cacos se espalharem pelo chão, nunca
os vi se juntarem e reconstituírem o vaso novo onde deitarei as flores do passado que
se reverte. Tento ter lembranças do futuro, abolindo a simetria do fluxo temporal.
Continuo ouvindo-a derramar sua memória na minha percepção. A partir dela, do
concreto que é ela, posso ver alguém esticando a língua da relatividade e, por
fim, sentir o fluxo do tempo e o espaço da minha memória ser povoado pelas
verdades inventadas que regariam flores amarelas.
terça-feira, 8 de novembro de 2011
Garotas de Meia Calça (Bukowski)
...circulo com o meu carro
espiando suas pernas
satisfeito por saber que jamais farei
parte nem de seus paraísos nem de
seus infernos. Mas os batons escarlates naquelas tristes bocas
que esperam! Seria delicioso
beijar cada uma delas, uma vez que fosse, por completo,
mas o ônibus as pegará primeiro.
domingo, 30 de outubro de 2011
A Semente Urgente
Foto e cozinha: Clístenes Nascimento |
O molho esperaria. Havia esperado até hoje. Até
esse domingo, até o corte da faca... A semente urgente, essa não esperou. Ficou
enfastiada do escuro do fruto. Queria ser planta e de molhos não sabia nada. A
semente impaciente brotou no escuro do fruto. Semente-esperta, danada, não se
fez de rogada: brotou no escuro do fruto! Queria ser feliz, eu acho...
terça-feira, 25 de outubro de 2011
Super Homem, a canção
Terremotos com 8.8 na escala Richter não sabem nada sobre alterar a rotação terrestre... Saudade de Superman, "mudando como um Deus o curso da história por causa da mulher". Salve Gil, na bela analogia, a nos trazer Nietzsche e lembrar-nos que ser (apenas) Homem já não basta...
quarta-feira, 19 de outubro de 2011
Anabella
Eu sempre
desacreditei nestas coisas do além, muito além de qualquer crença que
porventura quisesse ter. Mas agora recebo essa oferta irresistível por e-mail.
Veja que não falo dessas ciganas com vestidos seborrentos que agarram a mão da
gente no meio da rua que quase arrancam um dedo... Deixa eu ler seu futuro,
moço... Argh!! Não, essa me chegou on
line, toda moderna e cheia dos bits estelares, conseguindo escapar com sua energia positiva da minha caixa de spam. Coroa bonita, a danada da vidente
(Ah, eu alguns anos mais velho...). E, ainda por cima, uma intelectual (Professora
em artes e ciências adivinhatórias, astróloga, numeróloga, especialista mundial
em tarô e runas). Aposto que tem até alguns livros publicados por alguma
editora com corpo editorial formado por desencarnados de Harvard ou da Sorbonne.
E você não sabe o melhor: a sua grande vidência 100% GRÁTIS! Madame
Anabella me garantia, com seus belos olhos castanho-hipnose. Aliás, não apenas
ela. No banner estilizado com cortina vermelha e dedinho de unha também
vermelha sobre uma carta do Arcano Maior, havia ainda um casal de Curitiba
(lindo eles abraçadinhos) asseverando que voltamos a ser felizes no nosso
casamento. Veja que isso não é coisa fácil de conseguir sem a ajuda de uma
vidente... E o mais curioso (foi isso que me deixou intrigado e com meu grau de
crença nas alturas celestiais) é que de alguma maneira ela sabia meu nome. Clístenes,
mude a sua vida agora com os conselhos de Anabella. Ou seja, a mensagem era
realmente para mim!! Quando ela perguntou se eu desejava amor, dinheiro e
sucesso (não sei porque ela considerou exatamente essa ordem e se eu
poderia alterá-la ou interrelacionar as prioridades...), como eu poderia me
negar a ouvir os seus conselhos? Quem não quer essas dádivas terrenas em
qualquer ordem que seja? Eu, que sempre disse aos meus pobres pós-graduandos
que a ciência, apesar de sua tosca e falha aproximação do que chamaríamos de
verdade, é a melhor maneira de prever o futuro que temos, senti cada modelo
matemático estremecer ante a possibilidade de que um jogar de cartas, uma voz
do além, uma avaliação de fezes, uma tremidinha de ombros valha mais do que
qualquer estatística paramétrica. Ela pediu e eu obedeci cegamente (me sentia
em uma conexão astro-telepática com Anabella....): clique aqui.
Como sabia que ninguém descobriria minha infidelidade racionalista, pois fui
avisado que era 100% confidencial, fui em frente. Cliquei. Como pedido
pelo e-mail de confirmação, validei minha vidência gratuita. Que coisa
moderna, limpinha, essas clarividências pós-modernas. Não posso nem me lembrar
do vestidinho seborrento da cigana na rua... Segui com o mouse ao meu espaço
privativo onde, com a mão ainda trêmula pelo que o futuro me reservava,
Anabella muda o tom da conversa (embora os seus cabelos continuassem
impecavelmente penteados): Se, apesar de meus esforços, você não ficar 100%
satisfeito com meu trabalho espiritual, visite: www.payandpray.com
para pedir o seu dinheiro de volta (30 dias de garantia). Fiquei com o meu
recém-desperto esoterismo um pouco abalado, confesso. Eu sou uma pessoa difícil
demais de ficar 100% satisfeito... Vá lá, uns 90% em alguns casos. E essa
estória de dinheiro de volta? O cursor titubeou junto com a alma desencantada.
O teclado queria, mas a mão negava... Anabella, Anabella... Acabei clicando no xizinho
no alto da aba. Fechei Anabella e sua pele diáfano-esotérica da janela do meu
navegador. O fluido subliminal que nos unia se desfez. Não adianta. Esse meu
ceticismo tem algo de parapsicopatológico.
Vai acabar me matando de descrença ou, pior, me impedindo de alcançar mais
rapidamente, pelas vias da iluminação da clarividência, amor, dinheiro e
sucesso (em qualquer ordem que seja...).
domingo, 16 de outubro de 2011
Tannhäuser: Amor e Arte vão à Ópera
Tannhäuser e Vênus (Otto Knille, 1873) |
Uma noite de Ópera em Paris.
Certamente alguns torcem o nariz para a música erudita ou balé, por exemplo,
como se isso significasse uma clara demarcação de território, mais metido
ou superior ao que se chamaria de popular... Outros, torcendo o nariz em
sentido contrário, consideram-se por demais sofisticados para se entregarem ao
deleite de um sambinha fortuito, desses que dá vontade de balançar a bunda de
maneira contida ou desvairada. Como cantaria João Gilberto, “Madame não gosta
que ninguém sambe! Pra que discutir com Madame?”. Com a ópera, que me parece
tem um lugar de destaque na ideia de que pode ser aborrecida e indecifrável,
acontece esse tipo pré-conceito. De fato, exige alguma atenção, mas a
recompensa poderá ser deveras agradável para os de ouvidos, olhos e espírito
abertos.
Paris tem duas magníficas casas
para ópera que tive a oportunidade de conhecer. A Ópera Garnier, belíssima obra de arte que
demorou 15 anos (1860-1875) para ser construída, sob os auspícios de Napoleão
III, e a Ópera Bastille, inaugurada em 1989 e que é uma
belezura de arquitetura moderna, acústica e conforto. Nesta assisti semana
passada uma montagem da Ópera Tannhäuser, de Richard Wagner, espetáculo
dividido em três atos, cantado em alemão e com quatro horas de duração. Pode
parecer árdua a tarefa. Não me foi nem um pouquinho. Havia legendas em francês,
o que me permitiu acompanhar adequadamente os versos. A música de Wagner,
claro, magnífica. Os cantores (tenores, barítonos, sopranos, baixos) preencheram
a alma e as horas com uma beleza colossal. Os cenários, o figurino, a dança, a
encenação. O conjunto, a meu ver, faz da ópera o mais abrangente dos
espetáculos. Nem por isso, e por demais o contrário disso, inacessível.
Tannhäuser confessa suas estripulias com Vênus ao Papa Urbano IV. Ferdinand von Piloty (1828-1895). |
No início do terceiro Ato, meses
depois da partida de seu amado, encontramos Elizabete procurando Tannhäuser, em
vão, entre os peregrinos que regressavam de Roma. É Wolfram que o encontra aos
pés do Venusberg. Em uma ária de uma beleza estrondosa, vemos Tannhäuser contar
ao amigo a recusa do Papa em perdoá-lo por sua cumplicidade com Vênus. Seria
mais fácil crescerem folhas no cedro papal que Tannhäuser ser salvo, teria dito
o dito santo Padre. O poeta se desespera. Confuso, clama pelo amor de Vênus e,
em seguida, pelo de Elizabete. As duas aparecem-lhe e se personificam, se
mesclam, posam juntas, lado a lado, para o deleite do artista. Sua pintura
nunca pareceu tão magnífica. Instintivamente, Elizabete compreende que, ao
aceitar Vênus e a sensualidade, ela celebra também uma parte dela mesma da qual
ainda não havia se percebido, mas que sempre esteve presente. Neste momento, o
coro representando os peregrinos anuncia o milagre: folhas brotaram no cetro
papal...
No avião de volta ao Recife, com as
informações do libreto de Wagner que usei aqui e com minha memória
enovelando-se em minhas impressões, tento vencer algum tempo das longas horas de
voo com essas reminiscências que, nem de longe, se pretendem uma avaliação estética
formal ou especializada do espetáculo que vira. Em verdade, apenas uma secreção
mental a mais para este espaço de Blog e para as dores da alma que atormentaram
Tannhäuser (e o próprio Wagner) e tantos homens e mulheres daquele e deste
tempo. Seria uma interpretação ingênua da dramaturgia da Ópera Tannhäuser,
entretanto, a confrontação entre o amor carnal e espiritual ou entre o pecado e
a santidade. As esferas desses amores não estão de maneira alguma em pólos
opostos. Aceitar ou vivenciar um deles não implica, necessariamente, em
rejeitar o outro, o que os torna, dessa maneira, dialeticamente ligados, como
diria uma psicanalista. Neste sentido, A natureza do amor (e da arte), tal como
apresentada nessa bela obra, continua um tema de ampla, apaixonante e
infindável discussão. O espetáculo, por fim, foi ótimo.
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