segunda-feira, 11 de março de 2013

Samba & Poesia


Bebadosamba (Poema de Paulinho da Viola)


Um mestre do verso de olhar destemido
disse uma vez com certa ironia:
Se lágrima fosse de pedra
eu choraria

E eu, Boca, como sempre perdido,
bêbado de sambas e outros sonhos
choro a lágrima comum
que todos choram

Embora não tenha nessas horas
saudade do passado, remorso
ou mágoas menores,
meu choro Boca,

dolente por questão de estilo
é chula quase raiada,
solo espontâneo e rude
de um samba nunca terminado

Um rio de murmúrios da memória
de meus olhos que quando aflora
serve, antes de tudo,
para aliviar o peso das palavras
Que ninguém é de pedra.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Com licença poética (Adélia Prado)


Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
– dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Feliz Cumpleaños, Gabo!

"Não sinto nada mais ou menos, ou eu gosto ou não gosto. Não sei sentir em doses homeopáticas. Preciso e gosto de intensidade, mesmo que ela seja ilusória e se não for assim, prefiro que não seja. Não me apetece viver histórias medíocres, paixões não correspondidas e pessoas água com açúcar. Não sei brincar e ser café com leite. Só quero na minha vida gente que transpire adrenalina de alguma forma, que tenha coragem suficiente pra me dizer o que sente antes, durante e depois ou que invente boas estórias caso não possa vivê-las. Porque eu acho sempre muitas coisas - porque tenho uma mente fértil e delirante - e porque posso achar errado - e ter que me desculpar - e detesto pedir desculpas embora o faça sem dificuldade se me provarem que eu estraguei tudo achando o que não devia. Quero grandes histórias e estórias; quero o amor e o ódio; quero o mais, o demais ou o nada. Não me importa o que é de verdade ou o que é mentira, mas tem que me convencer, extrair o máximo do meu prazer e me fazer crêr que é para sempre quando eu digo convicto que "nada é para sempre."


terça-feira, 5 de março de 2013

Afonia


Tua saliva engravidou minha boca ora oca.

A carne, no presente, pressentiu o desejo do passado.
A alma, então embalsamada, vibrou.
Festa, corpo, gozo.
Agônico, insano, afônico,
Mordi teu grito mudo.
Se mais fosse,
Teria sido amor.
Retrato de Suzy Solidor (Tamara de Lempicka, 1933) 


segunda-feira, 4 de março de 2013

Da Série "I Love Soils"

"... havia tido tempo de pisar o barro do chão com os seus minúsculos e mal seguros pés, para receber dele, indelevelmente, a marca original da terra, esse fundo movediço do imenso oceano do ar, esse lodo ora seco, ora húmido, composto de restos vegetais e animais, de detritos, de tudo e de todos, de rochas moídas, pulverizadas, de múltiplas e caleioscópicas substâncias que passaram pela vida e à vida retornaram, tal como vêm retornando os sóis e as luas, as cheias e as secas, os frios e os calores, os ventos e as calmas, as dores e as alegrias, os seres e o nada."

Texto extraído do livro "As pequenas memórias", Saramago, Companhia das Letras, pág 10.

Saramago, em foto de Sebastião Salgado