terça-feira, 30 de agosto de 2011

Forelvia


Uma alegriazinha tola, assim do nada, lhe veio baixando pelos cabelos da cabeça. Alegriazinha fortuita, escondida nos meandros do silêncio, esperando pegá-la desprevenida no primeiro clarão de rachadura cerebral. Nem deu conta, lá estava ela. Alegriazinha fortuita, assim do nada, tolinha, surrupiando devagarzinho a tristezinha que ela já não queria mais...

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Gilles Lapouge, un amoureux du Brésil

Dictionnaire Amoureux du Brésil (Gilles Lapouge): Uma visão dura e ao mesmo tempo poética do que é esse país diversamente interessante e apaixonante. O olhar estrangeiro, com a experiência de 60 anos de Brasil, filtrando os estereótipos: “O brasileiro é cruel por muitas razões. E formidavelmente acolhedor, terno.”
“Sempre preferi São Paulo por ser uma cidade de grande imaginação. O Rio dorme e adormece as pessoas”.
  Je connais le Brésil depuis soixante ans, jour pour jour. Il m’a toujours étonné et surpris, parfois énervé, sans me décevoir jamais. Ce dictionnaire voudrait donner à voir ses forêts du début des choses, ses eldorados, les déserts écorchés du Nordeste, la douceur de ses habitants et leurs cruautés, la volupté de Rio, de Brasilia, de Sao Luis, les fêtes et les sambas, les fascinants poissons de l’Amazone, l’aventure du caoutchouc, du café et de ce bois écarlate qu’on appelle « le bois brésil ». Comme je fréquente ce pays régulièrement, je l’ai peint avec mes souvenirs. Je montre ses images. Je me rappelle ses odeurs et ses orages. Parallèlement, je parcours son histoire dont nous ne connaissons en Europe que des bribes, et qui fut brutale et fastueuse. Je parle également du Brésil d’aujourd’hui, partagé entre l’horreur des favelas et l’impatience d’un peuple qui, pour la première fois peut-être, sait qu’il est en charge de son propre avenir. C’est cela, être amoureux d’un pays.

domingo, 14 de agosto de 2011

A Tensão Superficial

Foto: Clístenes Nascimento
Cada gotícula é uma ilha. 
A gota não estoura. 
Descansa suave e líquida sobre a cerosidade da folha. 
Faz-se firme na pressão interna que permite o milagre de ser água.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A Mulher que adormeceu a manhã

Sleeping Woman - Zhang Yaowu

 O corpo moreno se estendia na cama. Parecia exausto. Apenas a calcinha vermelha encobria o que os olhos tentavam captar pela janela do prédio em frente. O quarto dava a sensação de amplitude visto da enorme janela de vidro sem cortinas. O corpo longo da mulher acentuava essa ideia ao guiar o olhar para toda a longitude do ambiente. As pernas em evidente desalinho. Uma completamente estendida ao longo da cama enorme, apenas parcialmente encoberta pelo lençol branquíssimo que se precipitava para fora da cama, enquanto a outra, com o joelho levemente dobrado, deslocava o equilíbrio natural que das costas, completamente nuas, se esperava. O cabelo era escuro, negro. De algum modo parecia palpável sua maciez, mesmo do outro lado da rua, na outra janela dois andares acima, longe da possibilidade física de que me escorresse entre os dedos a delicadeza da crina lisinha. Era longo o cabelo negro. Pendia para o lado deixando antever apenas parte do rosto adormecido. Metade de rosto com meio nariz e boca inteira, exposta com os lábios entreabertos. Os braços, em curiosa desarmonia, estendiam-se um acima da cabeça enquanto o esquerdo traçava uma linha paralela à coxa, distanciando-se desta a aproximada medida de dois palmos. Uma mão agarrava a coberta como num sonho em que se cai de um abismo, tentando no seu apreender o tecido evitar a queda imensa. A outra, longe do plano de visão, conduzia o olhar a imaginá-la sob o travesseiro, em absoluto repouso, sem a tensão que a mão que evitava o abismo despertava. Não havia a pressão do travesseiro a contê-la, pois a cabeça ocupava apenas metade dele, o lado esquerdo, acentuando a impressão de liberdade da mão direita que, embora invisível ao olhar, permaneceu desprotegida da imaginação do observador.
Provavelmente dormira tarde. Eram 09h30 e o corpo imóvel, fotografia estável emoldurada pela janela, parecia inerte ao barulho da rua e aos raios de sol que lhe banhavam das pernas até o comecinho das costas, um pouco acima da peça de lingerie cor de sangue que se integrava a cor morena, uniforme, do corpo.  Não parecia haver espaço para outro corpo na cama. Embora ampla, o corpo existente, da maneira oblíqua que ocupava o centro desta, lhe afigurava uma pequenez que não seria deveras pensada sob outro ângulo ou posição de acomodação. O quarto, até onde o limite das barreiras à curiosidade alheia permitia, tampouco denunciava outra presença. Roupas espalhadas, quiçá restos abandonados de uma entrega apaixonada que se esvaiu antes do amanhecer, não havia na cena estática. Nem sobre a cama nem pelo chão de madeira escura que contrastava com o armário de um tom levemente amarelo e de portas fechadas, portanto inescrutável a percepção de paletós, vestidos ou camisola. Talvez fosse seu hábito, nos dias quentes comuns àquela época do ano, desejar quase nada sobre a pele. O incômodo do calor, mesmo na condição seminua, poderia ser desconfortável e alongar a noite, antes do adormecer, mais que o esperado, fazendo a manhã invadir a noite insone e se esparramar além do horário que a rua, os carros e os olhares indiscretos determinavam.  Permaneceu a cena em persistente estado de imobilidade até quase o meio-dia. Estava exausta, de fato. A noite anterior fora, de qualquer maneira que se imaginasse ou desse a imaginar o corpo adormecido sobre a vastidão branca dos lençóis, insuficiente para o descanso. Ao mastigar os pedaços de carne em tiras envoltos no molho escuro, pensei na imobilidade do corpo e se estaria no mesmo lugar e posição que o deixei quando retornasse do almoço. Não estava. Nos dois dias seguintes que ainda permaneceria no hotel, o quarto devassado fez-se inabitado. Ao lençol branco, à madeira escura e ao amarelado do guarda-roupa faltavam-lhe o longilíneo corpo exausto que dormia, a pele que dava nexo ao misturar das cores e os raios de sol que perderam seu sentido ao não mais aquecer as pernas e as costas, em flagrante desequilíbrio com os membros desleixados da mulher que adormeceu a manhã.