quinta-feira, 28 de abril de 2011

Beethoven e Eu


Vi-o sentado na borda da minha cama, claro como os pelos de um poodle, com uma caneca de chá quentinho (ainda hoje sente o frio da água a lhe arrepiar a espinha). Parecia deprimido em sua autocomiseração, mas articulava bem as palavras no sotaque forte do interior paulista. De fato, fiquei até surpreso que um vira-lata (mesmo que chamado Beethoven) dominasse tão sublimemente a língua portuguesa. Embora triste, falava pausada e suavemente. O único momento de alteração de sua face canina veio quando me pediu que mudasse a música de Jobim. Desde o dramático acontecido, Águas de Março não “lhe caía muito bem...”. Pois é, o danado do cachorro perdido na enchente finalmente me apareceu. Em sonho, mas mesmo assim fiquei um pouco mais aliviado. Contou-me que mordeu a dona sem querer, na hora do desespero com a água barrenta ameaçando os dois. Pediu-me que lhe enviasse as desculpas por este ato falho e até me entregou, impresso em três vias de papel reciclado, o seu Curriculum Mortis para que ela guarde com carinho. Se não fosse pela imprudente dentada, lamentava-se, talvez os dois ainda estivessem unidos. Assenti com a cabeça; não quis revelar-lhe que Dona Ilair, em verdade, não teve forças para segurar ambos (ele e a corda) e teve que deixar o bichinho seguir a torrente. Talvez ele não suportasse a revelação da escolha. Era preferível a certeza da mordida mal dada à síndrome da rejeição póstuma, visto que, dada a sua situação de desencarnado, não poderia mais usufruir da convivência afetiva com a dona para a necessária superação do trauma psíquico. Sentia-se um pouco febril devido à leptospirose adquirida via água contaminada, mas garantiu que a apatia nada tinha a ver com as lembranças do triste momento e era também sintoma da doença bacteriana. “Se foste veterinário, e não agrônomo, entenderias melhor...” Não me convenceu muito, mas não discutimos mais o assunto. Desviamos para futebol, câmbio desfavorável às exportações e Spas para cães. Terminamos a noite ouvindo a Nona Sinfonia e jogando Batalha Naval. Ele ganhou três das quatro disputadas. Nem sempre se ganha, mas definitivamente fiquei um pouco mais aliviado após esse papo com o Beethoven...

domingo, 24 de abril de 2011

Sísifo e a Cana

Foto: Carllos Bozeli


           O peso e a brutalidade do esforço se entregam na mesma agonizante tarefa. 
O corpo humano, frágil, se maltrata no trabalho que apenas à máquina caberia. 
Não há poesia na lida. 
Não vemos aqui um Sísifo Feliz a alimentar-se da sua tragicidade consciente. 
A vastidão das canas a cortar esmaga a lógica, soterra a esperança ante o
torturante e infindável trabalho imposto por deuses vingativos. 
Alguns morrem por infarto. 
Outros por desesperança. 
Olhei-lhes os olhos, as mãos sujas e calejadas de onde escorrem meu açúcar, 
meu álcool e meu esquecimento ante sua invisibilidade de homem-coisa. 
Tem-se a pedra e Sísifo quer erguê-la ao topo do mundo. 
Tem-se o facão e esses seres do canavial cortam a própria carne, o vazio, o inexistente, o absurdo. 
Quando se faz sua alegria? Que paixões os moveriam a cada solfejar da lâmina inglória? 
Ser superior ao destino é pretensão de mito grego...

Esto brevis et placebis ( Parte III )

"O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água bastam para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que quem o mata, porque sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele; o universo desconhece tudo isso. Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento."

Blaise Pascal - Retrato por anónimo do Século XVII

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Páscoa de Olhos Azuis


O pai tentava explicar a filha de lindos olhos azuis que o ovo de páscoa escolhido continha menos chocolate do que o que ele, insistentemente, apresentava-lhe. Detalhava de maneira precisa e matemática as vantagens da camada mais espessa de chocolate e de que aquele brindezinho poderia ser comprado à parte, bem mais barato. Desnecessário dizer que os apelos não convenceram a pequena beldade. Ela quer o sonho, a magia, o lúdico da forma como lhe apresentaram na TV ou, os próprios pais, naquele supermercado lotado de outros desejos iguais... Como fustigá-la com gramas? Fiquei receoso ainda que ele tentasse explicar a menina que coelhos não põem ovos... Eu naquela fila de quilômetros, com os devidos ovinhos dos sobrinhos conseguidos quase à tapa debaixo do braço, lanço um sorrisinho cúmplice para a garotinha e lembro-me de minhas leituras meninas (Meu Pé de Laranja Lima), no qual o narrador-autor pergunta-se (com o devido assentimento de minhas lágrimas também meninas...): “Por que contam as coisas as criancinhas?”.

Caso haja especulação, desonestidade, espírito do capitalismo, exploração da ingenuidade infantil, histeria coletiva ou qualquer agravante que solape nosso bom senso, as crianças não levarão isso em conta (ou não seriam crianças, afinal!). Pais, avôs e tios, cansados, ressacados, exaustos (e muitos também fascinados com tantas opções, cores e brindes...) se perguntarão, enfim, se vale mais a pena não se sentir ludibriado pela inequívoca exploração comercial de mais uma celebração olvidada (quem se lembra da tal Páscoa, afinal, época na qual ressuscitam-se os coelhos-botadores-de-ovos...?) ou deixar aqueles rostinhos alegres com os seus doces pedaços de sonho...

domingo, 17 de abril de 2011

Prelúdio (sempre incompleto) ao teu sexo


Amantes (Frank Gaitan)

Teus pelos se eriçam.
Felina, lança-te ao bote.
As unhas rasgam-me a alma em urros mudos,
Ferida lacerada a arder nos suores.

Tua luta é entrega,
Resistência de mosca no arfar de leoa.
Bicho caçador feroz, esse teu corpo,
Caça fugidia nas minhas garras enormes.

De tudo resta tanto.
Não se acaba no quarto, no pranto.
Segue, como sempre, tarde adentro.


Esto brevis et placebis ( Parte I )


"O homem está condenado a ser livre"
Fonte: http://www.substantivoplural.com.br/tag/sartre/



quinta-feira, 14 de abril de 2011

Judas, Wellingtons e Ciências

Pintura Anônima do Século XII

Judas teve escolha ao beijar o rosto de Jesus? O nome do Iscariotes é sempre associado a traidor, persona non grata, aquele no qual não se pode confiar. Dante Alighieri o relegou ao último círculo dos infernos da Divina Comédia. Apregoa-se que o sujeito nem mesmo desejasse ser apóstolo, mas teria sido escolhido por Cristo: "Não fui Eu que vos escolhi a vós doze? No entanto, um de vós é um demônio" (Jo 6, 70).  Malhei muito boneco de Judas na adolescência, mas desde lá achava que exageravam a mão... Isso porque sempre tive a ideia de que, em um mundo determinístico, Judas não teria escolha. Ele veio à vida destinado a dedurar Jesus e assim o fez. Tudo já estava determinado. Nem de longe levanto aqui uma questão religiosa, mas sim filosófica. Se o Determinismo está correto, as pessoas são moralmente responsáveis pelos seus atos? Pois essa minha inquietação encontrou alento em um artigo da Science recentemente publicado (Experimental Phylosophy and the Problem of Free Will – Filosofia Experimental e o Problema do Livre-arbítrio).

Como indicado pelo autor (Shaun Nichols, da Universidade do Arizona), os filósofos dividem-se nesta questão. Alguns sustentam que o determinismo é irrelevante para as questões da responsabilidade moral (Compatibilismo) enquanto outros argumentam que se o determinismo é verdadeiro, ninguém pode ser verdadeiramente responsável (Incompatibilismo).  Nesse terrível episódio do assassinato das crianças em Realengo, o autor dos disparos teve escolha? Ele poderia ter agido diferentemente? O artigo de Nichols (em verdade uma revisão sobre artigos abordando o tema) nos dá uma ideia de como interpretamos esses fatos e demonstra que pessoas leigas (tal como os filósofos...) tem visões conflitantes. Por exemplo, em um experimento os participantes, ao serem apresentados ao que significa Determinismo, tenderam a responder que não é possível responsabilizar alguém neste universo onde cada decisão é completamente causada por algo que aconteceu antes da decisão (Intenção Divina no caso de Judas? Desordem neurológica no caso do Rio?). No entanto, quando os participantes foram colocados ante a situação de um homem que matou sua família, a resposta foi de que o homem era moralmente responsável pela sua ação (mesmo em um universo determinístico). De fato, casos concretos de mau comportamento levam as pessoas a atribuírem responsabilidade (mesmo quando uma desordem neurológica ou psicológica está envolvida) pelo desejo mais que humano de culpar o agressor. Em contraste, essas mesmas pessoas tendem a responder que ninguém pode ser culpado em uma situação determinística. A explicação para esses resultados conflitantes é que fatores emocionais afetam a nossa atribuição de culpa.  

Além de me fazer pensar mais sobre as minhas inquietações com o livre-arbítrio de Judas e dos muitos Wellingtons, o artigo da Science apresentou-me uma nova abordagem metodológica nas ciências humanas (a Filosofia Experimental) que a aproximaria mais das ciências ditas naturais, ou mesmo as sociais (que já se utilizam de técnicas experimentais). O assunto é interessantíssimo e causa opiniões apaixonadamente discordantes. A mim me deixa contente que a separação dessas ciências (ou saberes) ocorrida no século XIX possa ser, ainda que parcialmente, repensada e discutida.  Além do trabalho citado neste pequeno texto, uma tese orientada por Marilena Chauí (Robert Boyle e a filosofia experimental: a química como chave para a interpretação da natureza – Luciana Zaterka) e o site Filosofia Experimental podem ser boas leituras.  

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O Poço do Visconde (ou Geologia para Crianças) - Monteiro Lobato

Foto: https://www.soils.org/


A um quilômetro dali havia um morro com grande
desbarrancado — a "barreira", como se dizia no sítio. O
Visconde levou-os para lá. Diante da barreira, parou e
sorriu.
Os meninos entreolharam-se. Não compreendiam
que o Visconde encontrasse matéria para sorriso num
barranco feio como todos os mais.
— Que gosto é esse, Visconde? — perguntou
Emília.
— Ah, o sorriso que tenho nos lábios é um sorriso geológico — o sorriso de quem sabe, olha, vê e compreende. Este barranco é para mim um livro aberto,
uma página da história da terra na qual leio mil coisas
interessantíssimas.


sábado, 9 de abril de 2011

Geosmim e Abricós

Kids in Rain (Jeet Ganguli)
Sábado chuvoso em Recife. As pessoas da cidade geralmente não gostam de dias assim. Não é para menos; impermeabilizamos tanto o solo que, nesta cidade construída sobre mangues e rodeada de cursos d’água (cá estamos em uma planície aluvial envolvida por cinco rios), a água não tem como drenar livremente e, acumulando-se nas ruas e ameaçando barrancos, causa o caos no trânsito e na vida das pessoas devidamente conhecido pelos habitantes da dita Veneza Brasileira.

Mesmo assim, gosto de ver a água escorrendo na minha janela e, invariavelmente, relembro o moleque que adorava sair às ruas em dias de chuva. A mãe sempre reclamava (“vai ficar doente, menino!”), mas o apelo das bicas das casas, das correrias com os amigos chutando a água que fluía no meio-fio, da delícia da chuva forte ensopando o corpo, era maior (maior, inclusive, que as chineladas que algumas vezes advinham da desobediência...). Mas havia algo que eu gostava mais: aquele cheiro suave de terra molhada que a chuva trazia. Muitos anos (e um doutorado) depois, eu viria a descobrir que o odor se devia ao sesquiterpeno trans-1,10-dimetil-trans-9-decalol. Felizmente, há um nome mais simples para este composto: Geosmim ou Geosmina. O cheiro-de-terra-molhada (tão agradável para a maioria das pessoas que é usado em perfumes) deriva de alguns microrganismos presentes no solo, que o produzem, sempre que há umidade, a partir de uma enzima chamada germacradienol sintase.
 
Bem, os nomes podem até lhe ser estranhos, mas o aroma deve lhe ser muito familiar. Talvez você já o tenha sentido também em uma taça de vinho... Os sentidos humanos (paladar e olfato) são tão sensíveis ao geosmim que podemos detectá-lo em concentração tão baixa quanto 0,7 parte por bilhão! Mas não pensemos nós que a Natureza produz geosmim apenas para agradar nossos narizes. Vocês nunca se perguntaram como os camelos encontram o oásis? Em parte devido a essa fragrância que ele fuça no ar; enquanto o camelídio se refresca, os esporos dos fungos aproveitam para lhe subir a corcova e propagarem-se por quilômetros... Algumas cactáceas (plantas típicas de ambientes áridos) podem mimetizar a fragrância do geosmim para “iludir” os insetos de que encontraram água; assim se beneficiam da polinização.

Bertrand Russel passou a achar os abricós ainda mais saborosos quando soube que seu cultivo provém da China, que foram introduzidas na Índia pelos reféns chineses do rei Kaniska e dali se espalharam para a Pérsia, alcançando o Império Romano no primeiro século de nossa era (O Conhecimento inútil, capítulo 2 de O Elogio do Ócio). Portanto, o conhecimento não apenas torna menos desagradáveis as coisas desagradáveis, como torna ainda mais agradáveis as que já nos são agradáveis. Nesta manhã de sábado não resisti... Sai à chuva. Ainda mais que o moleque que era, o homem que sou achou ainda mais delicioso o cheirinho de terra molhada.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Liberdade de Imprensa... (?)


 

                As sandices da “revista de maior circulação nacional” (quando penso que o ápice já havia sido atingido) ainda me surpreendem. A reportagem é sobre terrorismo no Brasil com direito a uma ameaçadora e sombria foto de Bin Laden na capa. O distinto jornalista afirma, baseado em boatos e relatos vazados do Wikileaks por diplomatas norte-americanos estúpidos, com quase total desconhecimento do país, que a Al Qaeda e outras quatro organizações terroristas usam o Brasil para divulgar propaganda, planejar atentados, financiar operações e aliciar militantes”. E, pasmo, leio a matéria me alertar que o jornalista falou com seis (6!) desses terroristas (Considerando as ínfimas dimensões do nosso país, esse número é algo preocupante para a revista...). Além disso, ainda especulam que o Brasil é leniente com essa situação (mesmo ficando claro o conhecimento da Polícia Federal sobre os suspeitos e a não necessidade de maiores alardes) e por isto esses homens bomba-palito estariam no nosso meio. E (pasmo novamente) prova disso é que seríamos coniventes com movimentos sociais, especialmente o MST, que têm viés terrorista. Que esta versão tupiniquim da Fox americana confunda Movimento Social com terrorismo já não me espanta... mas o abuso desrespeitoso ao senso crítico, pelo visto, ainda tem muitas pérolas a nos apresentar.
                Aliás, na mesma magnífica edição, a revista está indignada com o que chama de cerceamento à liberdade de imprensa. Julga inadmissível (e aí? ainda há espaço para o pasmo??) que a CARAS (sim, você leu bem: CARAS) tenha sido impedida judicialmente de publicar comentários de ordem pessoal feitos pela Cibele Dorsa (que se suicidou alguns dias atrás) sobre o seu ex-marido hoje casado com a filha de Onassis.  Isso a revista considera informação relevante e um atentado à liberdade de imprensa. Afinal, o que faríamos sem essa informação, não é mesmo?!
               

terça-feira, 5 de abril de 2011

Fragmento

Agora tinha que ir, mas adoraria se ela aceitasse o convite para o jantar. Respondeu-lhe que quinta estava bem e que, sim, poderia buscá-la em casa as 20:30h. Congelou os dias esperando o relógio indicar-lhe 20:30h da quinta-feira. Sentiu-se como Clarice, ao finalmente ter em mãos o livro da gorducha sardenta, na sua felicidade clandestina de degustar cada página e esconder o livro das suas vistas, de modo a satisfazer o prazer de reencontrá-lo. A quinta-feira 20:30 era o livro de Marina. Só que seu aguardar era como ter os dias restantes do tempo presente como um obstáculo a se aniquilar; queria saltar-lhes o enfado da espera. De fato, pareceu-lhe que da livraria saltara para a mesa do restaurante, como se de domingo se saltasse para a quinta. Os sons, as risadas, o foie gras, o docinho do licor na boca... A intimidade se confirmara, apesar das aparentes diferenças. Amaram-se naquela mesma noite, com a ânsia serena que ela antecipara pelo assombro do primeiro encontro.