domingo, 1 de abril de 2012

Funcionário do Mês: Marshall Berman



Moscou. Kandinsk, 1916.

Eu começo a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e tumultuada me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando diante de meus olhos, eu vou ficando aturdido. De todas as coisas que me atraem, nenhuma toca o meu coração, embora todas juntas perturbem meus sentimentos, de modo a fazer que eu esqueça o que sou e qual o meu lugar (Rousseau, na voz de Saint-Preux de “A Nova Heloísa”).

Marshall Berman foi criado no bairro do Bronx, Nova Iorque, e ficava fascinado ao perceber-se parte de um ambiente que todos definiam como moderno, o ambiente de uma grande metrópole em transformação em meados do século XX. Isso o influenciou de tal maneira, que dedicou grande parte de sua vida aos estudos sobre a modernidade. Acabo de ler sua obra mais importante sobre o tema: Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade, Companhia de Bolso, 1982, 465 p. Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. O livro, de leitura fluida e extremamente agradável, é virtualmente um passeio pela literatura, arquitetura, política e artes modernas e revela, em cada parágrafo, um intelectual capaz de falar com desenvoltura e elegância literária pouco comum sobre temas tão variados e nos conduzir em uma viagem que, sendo muito da história de sua própria vida, é a história de todos nós, os modernos (mesmo que nem se conheça o tema ou se tenha lido sobre isso). De formação Marxista (Berman sugeriu em entrevista que nutriu desde cedo uma posição de vingança contra o capitalismo, pelo fato de seu pai ter morrido de enfarte após problemas com os negócios), o autor apropriadamente escolhe a famosa frase de Karl Marx no Manifesto Comunista como título ao livro e ao resumo mais sintético, me parece, do que seria a própria modernidade:

“Todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de antiguidade e veneráveis preconceitos e opiniões, foram banidas: todas as novas relações se tornam antiquadas antes que cheguem a se ossificar. Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é profanado, e os homens finalmente são levados a enfrentar (...) as verdadeiras condições de suas vidas e suas relações com seus companheiros humanos.”

                Marx é constantemente revisitado pelo autor. Este filósofo é um elo de conexões que interrelaciona Rousseau (segundo Berman, o primeiro a usar a palavra moderniste no sentido que será utilizada nos séculos XIX e XX), Goethe, Nietzsche, Dostoievski, Gogol, Puchkin, Baudelaire e Maiakovski, entre outros, na tentativa de nos transmitir a ideia de construção da modernidade e de suas implicações. Berman nos transmite através desses autores a sensação de sermos modernos, de fazermos parte desse turbilhão que tudo transforma, que nos inquieta constantemente, mas que ao mesmo tempo é tão amplo em possibilidades. Tece ainda especial crítica aos pós-modernistas, em especial a Foucault (talvez porque capitaneados por este), por, segundo ele, abdicarem da tentativa de construir um modelo mais verdadeiro (não retalhado em uma série de componentes isolados – industrialização, urbanização, formação de elites) para a vida moderna. Berman considera que Foucault reserva seu mais selvagem desrespeito às pessoas que imaginam ser possível a liberdade para a moderna humanidade e estranha que muitos intelectuais da atualidade (ele falava nos anos 80, mas ainda soa válido em 2012) parecem querer definhar no cárcere criado por Foucault, pelo seu discurso do poder, que nos privaria de, pelo menos, resistir às opressões das injustiças da vida moderna e adentrar suas possibilidades.
                Essa possibilidade de liberdade é também explorada por Marshall Berman ao indicar a rua, as cidades e as praças como os lugares onde a liberdade deve se fazer mais viva. A ocupação do espaço público das cidades modernas pelas pessoas comuns. Aqui vemos no livro um magnífico passeio pela arquitetura de cidades como Paris, São Petersburgo e a própria Nova Iorque de Berman, e de como sua conformação urbanística cria e influencia a própria modernidade. O autor se utiliza de grandes autores (atores) dessas cidades, como Baudelaire e Gogol, por exemplo, para nos apresentar suas hipóteses sobre a urbanidade. A Rússia e seu particular desconforto em relação ao resto da Europa moderna (percebe-se claramente esse viés nos textos de Dostoievski), e mesmo assim centro de revoluções (ainda que algumas, talvez, historicamente fracassadas – se é que se pode falar em fracasso na história) que ajudaram a criar o conceito de liberdade para o homem moderno, tem papel de destaque nesse belo trabalho. Berman não cita um filme, A Arca Russa (nem poderia fazê-lo, pois foi produzido em 2002 e o livro vinte anos antes), mas ouso fazê-lo. Acho que este filme, de 1h37min filmado em uma única tomada no Museu Hermitage de São Petersburgo, e no qual um diplomata francês do século XIX inicia uma jornada pela história da Rússia entre os séculos XVIII e XXI, pode ajudar muito na compreensão deste país e na corroboração dos conceitos do livro sobre a Cidade de Pedro e a modernidade à moda russa.
                Nesta manhã de domingo, ao terminar a leitura deste livro e escrever essa pequena secreção sobre minhas impressões leigas, sinto que aprendi um pouco mais sobre me sentir em casa neste mundo moderno. No momento em que escrevo, Coltrane está ao fundo com seu magistral A Love Supreme. Nada me parece ecoar mais os sons da modernidade. Sinto-me em casa.



               

2 comentários:

  1. Bom tema para reflexão! O homem criou uma nave, e agora está escravizado a ela... Quão fadigosa foi essa corrida para apertar todos os parafusos, e deixá-la em ponto de bala para nos levar a Marte, a lua, ao sol..., e onde mais aspirarmos ir. Seria primoroso, se nela, o homem conseguisse distinguir o que é liberdade de consciência e espaço. Como desfrutar de cada lugar que ela poderia nos levar, se ainda continuamos correndo ferozmente para fazer a manutenção de peças desgastadas pelo tempo, e ou, continuar criando novas peças? Sobrevivemos ligados no automático! Restar-nos sonhar que um dia após a contagem regressiva para sua decolagem, ela nos leve ao delírio, mas não deixe nossos pés sair do chão.

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  2. Caro(a) Anônimo(a), obrigado pelo comentário.
    Há que se encontrar a liberdade; A de consciência, como a denominas, é ainda mais difícil dado a esse duplo psíquico que nos impõe seus desejos discordantes... Mas podemos, sim, desfrutar de cada lugar mesmo fazendo manutenção das peças gastas, reavaliando nossos erros e construindo o futuro. Sentindo saudade do futuro. Caminhar suavemente nesse equilíbrio tênue, onde não se pisa em chão firme, é exatamente o desafio imposto aos modernos. Talvez devêssemos (onde essa nave nos levaria??) não nos sentirmos Foulcaultianamente escravizados, mas tentemos esse seu delírio seu, desligando o automático e sentindo a textura de cada peça, seus sons e cheiros, na mão. A liberdade do câmbio manual.

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