quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Frutos do mar e dos rios

Fartar-se nas horas gordas daqueles dias ao mar. De comidas e de cama, do sono profundo, dengoso, balançado pela brisa e pelas ondas que viajam em sons aos ouvidos quase adormecidos na rede na qual se afunda todo, se espreguiça, boceja com a boca ainda saboreando em pensamento os quitutes do almoço tardio, quando a fome das águas, dos rios, do mar, saciada, dá lugar ao paladar salgado, doce, acre, daquelas horas de paz e comilança, de amor, de amigos, remédios nunca demasiados para a alma e para o corpo. Dias assim, nos quais o barulho da cidade grande, seus sons intermináveis, seus carros, sua fumaça, seus dias cheios e noites escassas de estrelas, suas ruas atulhadas, dando lugar a vastidão, a amplidão descomunal da paisagem que se desenha entre morros e mar, rios que serpenteiam vales até se entregarem macios e delicados nas barras que se precipitam no oceano. O manguezal, os caranguejos, os homens do mar, as caboclas, os moleques morenos banhados de luz dando cambalhotas que findam no mergulho no rio, entre os peixes, entre as plantas do mangue, os caranguejos. Doce e sal incrustados, peças únicas, indissolúveis:  peixes, caranguejos, caboclas, homens do mar, meninos lambuzados de alegria, donos e reféns da beleza imensa daquelas águas e terras. E no fim da tarde, quando a praia costuma ficar ainda mais rara de gente, quando os meninos e os homens há muito já se foram com suas colheitas do mar e do mangue, quando as caboclas preparam o jantar ralo, cedo, lento, daqueles casebres tão distantes de tudo, quando o sol é mais amarelo, mais perto, quase recostado nas costas da gente, cravado na areia, por trás dos morros, dos vales, do dia, quando a água que guarda o calor desse mesmo sol, que agora tem uma luz fria, distante, se escondia, deixando a lua crescente, sorridente, elevar-se em seu lugar, essa hora era o momento do banho de mar que encerra a luz do dia. O morno da água, o frio de fora dela, que começa a anunciar a noitinha chegando, facetas de uma mistura de temperaturas, de cores, de astros, de horizonte. Essa é a hora que o mar é mais convidativo, mais cúmplice, mais amigo, mais terrível, mais terno e mais ameaçador. O mar que na língua portuguesa é homem. Masculino, forte, tentando sobrepujar com chicotadas e lambidas, espumas, milênios, os que lhes desrespeitassem a força titânica. Mas o mar é carícia também. La mer. É mulher, sereia, Janaína, Iemanjá. Mar-mulher, com tranças de sargaços. Na noite do céu furado de estrelas, um latido distante, inconstante, de um cachorro, único companheiro sonoro das ondas. O céu furado de estrelas. Precisa-se ter a escuridão da terra, longe das luzes da cidade, para se apreciar com mais profundidade o brilho sob a escuridão noturna. Uma coruja, o cachorro já não late, mas o mar continua incansável, quebrando ondas no breu da areia. A noite longa agora guarda os segredos do mar escuro, sonoro, úmido, forte, macho, fêmea. Ele continuará, como sempre, como antes dos peixes, dos caranguejos, dos homens, dos meninos.  Adormeço. Tomara que morrer seja assim.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A Blogueira da CIA

Pousou em Recife a dissidente-blogueira cubana. Em Cuba (país que visitarei pela sexta vez este ano) basta conversar com qualquer pessoa na rua para perceber como é persona non grata entre o povo. Isso devido ao fato de ser financiada por recursos norte-americanos, especialmente de grupos anticastristas de Miami financiados pela CIA. Existem dissidentes sérios e respeitados pelo povo cubano mas desses você nunca vai ouvir falar em noticiários da Globo... Alguém já ouviu falar de Oswaldo Payá? Morto em um acidente de carro. Esse, sim, todos os que, por um motivo ou por outro, discordam do governo (e muitas vezes com razão), respeitam. Mudar o que está errado em um país não significa dá-lo de brinde às antigas aves de rapina. Soberania não se vende e o povo educado de Cuba sabe disso.

Yoani Sánchez, a Blogueira Made in USA

domingo, 17 de fevereiro de 2013

O Primeiro Corpo



Teriam se passado 30 anos. A primeira visão do corpo nu de uma mulher, ou parte dele, tinha se cristalizado na retina. A porta entreaberta, um espelho que reflete a imagem do corpo no banho. Uma descoberta sem precedentes até então. Não que não tivesse visto mulheres nuas antes. Muitas. Mas aos 12 anos essas imagens me chegavam apenas pelas revistas adquiridas às escondidas, com técnicas de espionagem, e compartilhadas entre os moleques da rua. Assim, com textura, cheiro e formas, nunca antes. No corredor exalava um odor úmido e quente, levemente adocicado pelo perfume do sabonete. O barulho da ducha, as gotas e o vapor a nublarem parcialmente o vidro do box conspiravam para a elevação dos batimentos cardíacos com a excitação daquele momento. Morena clara, cabelos negros curtos, magra. Não como essas modelos, magérrimas, mas magra como se definia naquela época. Contornos suaves, seios pequenos, bunda arredondada e pernas roliças, quase fortes, jovem nos seus vinte e poucos anos. Em nada desagradava o meu olhar de descoberta, muito pelo contrário, me deslumbrava. Visitava nossa casa algumas vezes, mas com escassa frequência. Vinha por motivos de parentesco distante. Meu corpo tremia. O medo do flagrante, a alegria incontida, a cena inusitada, inesperada, a imobilidade necessária do espião, a excitação. Ela alisava os cabelos espumados, roçava a cabeça molhada com movimentos circulares das pontas dos dedos. Estava de costas, assim a via pelo espelho: com as costas a servirem de queda para a água que escorria do pescoço, dos ombros, e se precipitava pelo corpo até banhar as coxas, limite anatômico para a minha limitada perspectiva através da porta e do espelho. A pele coberta de gotas, de água corrente e de cheiro, parecia ainda mais lisa vista sob aquele manto líquido. Virou-se de lado e pude visualizar lateralmente os seus seios. Menores que os imaginava por sob as camisetas e blusas, mas ainda assim beiravam a perfeição aos meus olhos atentos e desbravadores solitários do corpo no banho. Paralisado entre a fulgurante cena e o medo de ser descoberto, não me decidia entre continuar ali, atônito, maravilhado, ou me esvair lenta e sorrateiramente para o quarto. Ouvia o barulho da minha mãe na cozinha, a poucos passos dali, preparando o almoço. Eram aqueles poucos minutos de uma eternidade abissal. O tempo congelado, medido apenas pelos movimentos do corpo molhado, da ducha que se derramava sobre ele, da minha respiração arrítmica, do tremor nas pernas indecisas. Entre um olhar para o corredor, certificando-me da ausência de testemunhas do meu pequeno delito, e o retorno ao foco do desejo, daquele pequeno e adorável pecado que me paralisava, vi o olhar dela cruzar o meu no espelho. Toalha a frente do busto, segura pelas duas mãos fechadas a altura dos seios. Divisei um leve sorriso de cumplicidade. Uma mistura de susto e a alegria impulsionaram minhas pernas imberbes. Em passos ligeiros refugiei-me no quarto, com o coração ainda aos pulos. Veriamo-nos algumas vezes ainda, sem nunca mencionarmos o momento que ainda consigo reproduzir com certa exatidão (ou imaginação) trinta anos depois.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Folie


"Um poeta desfolha a bandeira
E a manhã tropical se inicia
Resplendente, cadente, fagueira
Num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira
Que o jornal do Brasil anuncia"


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Naufragar-se


Barco partido ao meio.
O fundo do mar é nada,
Pro profundo do teu peito.

Pintura: Hugo Lugo (México)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Goethe e a Goethita

Poucos sabem (mesmo entre aqueles que estudam mineralogia), mas o grande Johann Wolfgang von Goethe, autor do clássico "Fausto", dá nome a um importante mineral de solo, a goethita, que foi por ele descrita. Goethe considerava-se melhor cientista do que escritor (do que a história discorda...). Mineralogia era mais um entre os seus múltiplos interesses, que incluíam literatura, filosofia, dramaturgia, ciências naturais e diplomacia.
Um homem de outro tempo, onde as ciências naturais e a filosofia andavam juntas. Uma pena que hoje, com a desculpa de que as ciências são muito amplas, nossos cientistas (de Humanas a Exatas) esqueceram essa formação mais global do ser humano e mal e parcamente sabem falar de algo que não seja "especificamente" de sua "área". Que os nossos alunos aprendam e apreendam essa dimensão.