sábado, 27 de abril de 2013

Ariadne

Entre tuas mãos, como uma dança com o fogo. Entre tuas ancas, a vida por um triz se desfaz e se refaz. Movem-se lenta e rapidamente, as nuas pernas tuas. A um passo do abismo infinito do teu hálito de mato, afago as bruxas na tua bruma de pelos, escura noite sem lua onde deito e durmo meus medos. Eu, perdido Teseu, recebo tua espada e fio, como se ainda houvesse caminho de volta para esse irremediável labirinto. 

Ariadne e Teseu, pintura francesa do século XIX

terça-feira, 16 de abril de 2013

O Rapaz do caqui



O angustiante calor da tarde em nada incomodava o sorriso do rapaz. Era aberto, entre seus caquis e pinhas. Baixo o vidro. Ele acorre e me pergunta o que levarei hoje. Talvez lembre que lhe comprei caquis há umas duas semanas. Improvável. Gentil, tem o tino comercial e a simpatia. Atira essas flores janela adentro. Como estão os caquis, perguntei-lhe. De primeira, meu caro, veja que bonitos. Fiquei com duas bandejas. Dez reais por cores belas, de um vermelho ao ponto. Agradeceu-me, desejou-me um bom dia e retornou às suas frutas harmoniosa e coloridamente arrumadas na esquina, sob um guarda sol. Antes de o sinal abrir, vi o rapaz as tratar com carinho, empilhando-as de uma maneira delicada sobre as bandejas de isopor. Depois, com esmero, envolveu-as em um saco plástico, o qual permanecia aberto na superfície até o próximo cliente. Acenamo-nos um até logo, com certa cumplicidade que tomei mais minha que do rapaz. Ele, alegre com mais uma venda. Eu, satisfeito com os caquis e, principalmente, com a natural elegância e serenidade daquele rapaz no sinal. Em casa, as frutas derreteram na minha boca como só um caqui maduro sabe fazer... Enquanto sentia a umidade doce, pensei como há alegria nas coisas pequenas.


sexta-feira, 12 de abril de 2013

Sina no Pina

No calor das ruas do Recife, eu guardava teu sol na pele. O odor primaveril do teu aroma de mulher passeava ainda no meu nariz suado. Tua ausência no barulho daquelas avenidas entregava uma suavidade lacônica aos meus ouvidos mortos de tua voz. Teu sorriso na tarde punha-se a rir da minha cara. Escondo a cara, mas na memória persistem tuas mãos imensas. Sigo pelas calçadas. Morro por ti em cada esquina.


quinta-feira, 4 de abril de 2013

O Herói (Caetano Veloso)


Nasci num lugar que virou favela
Cresci num lugar que já era
Mas cresci a vera
Fiquei gigante, valente, inteligente
Por um triz não sou bandido
Sempre quis tudo o que desmente esse país
Encardido
Descobri cedo que o caminho
Não era subir num pódio mundial
E virar um rico olímpico e sozinho
Mas fomentar aqui o ódio racial
A separação nítida entre as raças
Um olho na bíblia, outro na pistola
Encher os corações e encher as praças
Com meu guevara e minha coca-cola
Não quero jogar bola pra esses ratos
Já fui mulato, eu sou uma legião de ex mulatos
Quero ser negro 100%, americano,
Sul-africano, tudo menos o santo
Que a brisa do brasil briga e balança
E no entanto, durante a dança
Depois do fim do medo e da esperança
Depois de arrebanhar o marginal, a puta
O evangélico e o policial
Vi que o meu desenho de mim
É tal e qual
O personagem pra quem eu cria que sempre
Olharia
Com desdém total
Mas não é assim comigo.
É como em plena glória espiritual
Que digo:
Eu sou o homem cordial
Que vim para instaurar a democracia racial
Eu sou o homem cordial
Que vim para afirmar a democracia racial

Eu sou o herói
Só Deus e eu sabemos como dói

Poeminha do sono

Poesia vacina.
Inocula versos no vazio da vida.
Água dura, rasga a pedra fria.
Sopra rima e ritmo na palavra que jazia,
Intacta, estática,
Antes de saber-se poesia.


quarta-feira, 3 de abril de 2013

Poema Molhado

Tem água em cada célula. Tem água na sede, no desejo e na folha da planta. Até na Coca-Cola tem água. No céu tem água que cai. Lambe terras, carrega sal pro mar. Viaja céu, brincando de vapor. Tem água no umbigo, no nariz e na bosta do gato. Tem água na flor: sem ela nem planta seria. Semente se sonha em planta, em flor, mas sem água sonha nada, desanda, secura sombria de ser nada, sem água, sem vida. Tem água no suco, no coco, no canudo, no muco e no suco gástrico. Tem água em tudo. Tem água na língua, na boca, na tua e na minha. Tem água no beijo. Tem água até na poesia. Bendita água, lambida de minha língua, água desse poema molhado.


R.I.P.


Queria ser feliz.
Comprou carro, geladeira e viajou pra Paris.
Comprou vestido de noiva.
Casou num domingo de sol.
O bolo era enorme.
Teve a casa que queria, enorme, no melhor bairro.
Queria ser feliz. 
Mas teve tanto medo que morreu sem tentar.

Pintura: Jessie Romaneix