domingo, 16 de outubro de 2011

Tannhäuser: Amor e Arte vão à Ópera


Tannhäuser e Vênus (Otto Knille, 1873)

Uma noite de Ópera em Paris. Certamente alguns torcem o nariz para a música erudita ou balé, por exemplo, como se isso significasse uma clara demarcação de território, mais metido ou superior ao que se chamaria de popular... Outros, torcendo o nariz em sentido contrário, consideram-se por demais sofisticados para se entregarem ao deleite de um sambinha fortuito, desses que dá vontade de balançar a bunda de maneira contida ou desvairada. Como cantaria João Gilberto, “Madame não gosta que ninguém sambe! Pra que discutir com Madame?”. Com a ópera, que me parece tem um lugar de destaque na ideia de que pode ser aborrecida e indecifrável, acontece esse tipo pré-conceito. De fato, exige alguma atenção, mas a recompensa poderá ser deveras agradável para os de ouvidos, olhos e espírito abertos.
Paris tem duas magníficas casas para ópera que tive a oportunidade de conhecer. A Ópera Garnier, belíssima obra de arte que demorou 15 anos (1860-1875) para ser construída, sob os auspícios de Napoleão III, e a Ópera Bastille, inaugurada em 1989 e que é uma belezura de arquitetura moderna, acústica e conforto. Nesta assisti semana passada uma montagem da Ópera Tannhäuser, de  Richard Wagner, espetáculo dividido em três atos, cantado em alemão e com quatro horas de duração. Pode parecer árdua a tarefa. Não me foi nem um pouquinho. Havia legendas em francês, o que me permitiu acompanhar adequadamente os versos. A música de Wagner, claro, magnífica. Os cantores (tenores, barítonos, sopranos, baixos) preencheram a alma e as horas com uma beleza colossal. Os cenários, o figurino, a dança, a encenação. O conjunto, a meu ver, faz da ópera o mais abrangente dos espetáculos. Nem por isso, e por demais o contrário disso, inacessível. 

Ópera Bastille, Paris.


A história contada parece simples, tocante e, apesar de escrita e composta no século XIX (a primeira apresentação foi em 1845, em Dresden, Alemanha), é bastante atual como toda grande obra. Wagner coloca Tannhäuser deparando-se com as contradições de seus sentimentos e a busca de inspiração para sua arte. Um parêntese aqui para detalhar que o artista, que na lenda original germânica é um poeta, é apresentado por Wagner também como artista plástico e cantor. Um artista múltiplo do futuro, segundo o diretor de cena do espetáculo, Robert Carsen. A busca do artista é representada pelo amor de duas mulheres (ou duas formas de amor). Uma delas é a própria Vênus, que como sabido é de induzir qualquer cristão ou ateu à devassidão do amor carnal. Com Tannhäuser não seria diferente. Vênus é a inspiração dionisíaca para sua arte, representada pela pulsão sexual que pode ser, ao mesmo tempo, uma benção e uma maldição. O primeiro Ato deixa essa contradição clara na tentativa desesperada do artista em retratar, apreender, sua musa na pintura. O pincel, a tela, o palco, a cama, a alma do poeta jorram vermelho. Há algo de Prometeu aqui, na busca do artista de criar algo maior do que é dado ao ser humano conhecer. Neste primeiro Ato vemos o artista completamente dominado pela beleza de Vênus, suplicando-lhe que seja sua musa e o ame como homem. A deusa da beleza promete-lhe então grandes prazeres e inspiração se ele permanecer com ela no Venusberg, a montanha onde habita, supostamente escondida dos mortais. Ao que parece, entretanto, após deleitar-se um ano em luxúria com a deusa, Tannhäuser sente-se incompleto, preso ao amor sensual de Vênus, e clama por sua liberdade. Vênus fica uma arara e diz-lhe que se ele escolher descer à Terra nunca mais lhe será permitido voltar. Apesar da DR com a divindade e da tentação quase irresistível (lembremos que o poeta estava em lida com a própria deusa do amor, representada nesta montagem, em corpo nu, pela mezzo-soprano Sophie Koch), o pobre atormentado reúne forças para deixar Venusberg. Ao abandonar sua musa, sozinho e se remoendo dos pecados do passado, Tannhäuser se junta a peregrinos penitentes. Nisso, aparece-lhe o amigo Wolfram que, surpreendido, quer saber por onda andava. Tannhäuser se recusa a contar-lhe que passou o tempo todo de desaparecimento se refastelando nos braços de Vênus. No entanto, decide retornar para sua cidade com Wolfram quando este lhe recorda o amor de Elizabete, a sobrinha do Landgrave (título de nobreza alemão), e seu amor sem fim por ele. Outro parêntese para dizer-lhes que Wolfram, em segredo, é apaixonado por Elizabete e parece de um ato digno de menção ao conduzir o amigo ao encontro do amor que ele próprio desejava...
O segundo Ato iniciou com uma linda introdução da orquestra e um belíssimo dueto do tenor Christopher Ventris e da soprano Nina Stemme no reencontro de Tannhäuser e Elizabete. Wolfram, coitado, os assiste sem ser notado. O Landgrave decide promover uma festança e promete a mão de Elizabete ao vencedor de um concurso artístico que versará sobre a quintessência, a verdadeira natureza, do amor. Aqui os convidados são representados por um coro, elegantemente vestido, que adentra o cenário e participa da festa. Wolfram é o primeiro a se apresentar e faz um tributo de amor idealizado à Elizabete. Tannhäuser, por sua vez, ainda com corpo e alma possuídos por Vênus apresenta um verdadeiro hino aos prazeres carnais. Os convidados se escandalizam, dizem impropérios e exigem que ele abandone o salão. Elizabete, no entanto, entendendo os tormentos do amado (e, pensei eu, o perpétuo conflito interior do artista ao tentar dar forma à sua criação) os interrompe declarando que eles não têm o direito de julgá-lo. Aqui Elizabete parece aceitar dividir o amor de Tannhäuser com sua musa. Em verdade, com sua Arte (personificada em Vênus), uma amante exigente que ocupará sempre o primeiro lugar de suas atenções. Neste momento da Ópera aparece a representação dos amores do artista. De um lado Vênus, personificando a paixão, os impulsos, a sensualidade. Do outro, Elizabete, que representa a razão, a serenidade, a espiritualidade e a segurança. O Ato termina com um Tannhäuser atônito frente à defesa veemente de Elizabete e cônscio da obsessão (maldição?) ditada pela paixão por sua musa. O Landgrave o informa que apenas será perdoado das blasfêmias cantadas se for a Roma com os peregrinos em busca de penitência. Tannhäuser então segue para a cidade eterna em busca do perdão do Papa.
Tannhäuser confessa suas estripulias com Vênus ao Papa Urbano IV. Ferdinand von Piloty (1828-1895).
 
No início do terceiro Ato, meses depois da partida de seu amado, encontramos Elizabete procurando Tannhäuser, em vão, entre os peregrinos que regressavam de Roma. É Wolfram que o encontra aos pés do Venusberg. Em uma ária de uma beleza estrondosa, vemos Tannhäuser contar ao amigo a recusa do Papa em perdoá-lo por sua cumplicidade com Vênus. Seria mais fácil crescerem folhas no cedro papal que Tannhäuser ser salvo, teria dito o dito santo Padre. O poeta se desespera. Confuso, clama pelo amor de Vênus e, em seguida, pelo de Elizabete. As duas aparecem-lhe e se personificam, se mesclam, posam juntas, lado a lado, para o deleite do artista. Sua pintura nunca pareceu tão magnífica. Instintivamente, Elizabete compreende que, ao aceitar Vênus e a sensualidade, ela celebra também uma parte dela mesma da qual ainda não havia se percebido, mas que sempre esteve presente. Neste momento, o coro representando os peregrinos anuncia o milagre: folhas brotaram no cetro papal...
No avião de volta ao Recife, com as informações do libreto de Wagner que usei aqui e com minha memória enovelando-se em minhas impressões, tento vencer algum tempo das longas horas de voo com essas reminiscências que, nem de longe, se pretendem uma avaliação estética formal ou especializada do espetáculo que vira. Em verdade, apenas uma secreção mental a mais para este espaço de Blog e para as dores da alma que atormentaram Tannhäuser (e o próprio Wagner) e tantos homens e mulheres daquele e deste tempo. Seria uma interpretação ingênua da dramaturgia da Ópera Tannhäuser, entretanto, a confrontação entre o amor carnal e espiritual ou entre o pecado e a santidade. As esferas desses amores não estão de maneira alguma em pólos opostos. Aceitar ou vivenciar um deles não implica, necessariamente, em rejeitar o outro, o que os torna, dessa maneira, dialeticamente ligados, como diria uma psicanalista. Neste sentido, A natureza do amor (e da arte), tal como apresentada nessa bela obra, continua um tema de ampla, apaixonante e infindável discussão. O espetáculo, por fim, foi ótimo.

2 comentários:

  1. Aos poucos fui criando cenas e personagens, parecia estar do outro lado da platéia, o texto tinha vida... Terminei de ler, resolve ler novamente e tentar visualizar mais uma vez aquela fascinante imagem. A cena não se repetia, que pena!!! Era a única possibilidade de vivenciar aquele momento que parecia tão mágico. Olhei em volta e lá estava o celular a tocar, trazendo-me para realidade, e na minha noite de ÓPERA no Brasil o personagem da platéia tinha que ajudar quem estava do outro lado da linha, queria apenas saber se podia esquentar um pouco de água para fazer café, seu gás tinha acabado. Vizinhos são ótimos..., de volta a realidade, quem sabe um dia terei o prazer de vivenciar as imagens que consegue visualizar. Enquanto não acontece... Só a leitura pode nos fazer viajar em mundos desconhecidos.

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  2. Obrigado, anônino(a), pela leitura e pelas "imagens" de seu texto...

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