terça-feira, 15 de novembro de 2011

O Fluxo simétrico da memória

A Persistência da Memória (Salvador Dali, 1931)

 “Agora, à distância, vejo melhor as coisas passadas”, ela disse. A memória, então, parecia uma região cerebral entrecortada por diferentes acidentes geográficos. Pequenos montes e vastas depressões. Altas montanhas e estreitos vales. A memória era um espaço. Apenas no passado podemos ver o tempo, o nosso tempo vivido, como um espaço. O que foi mais significativo e mais tocou a emoção, ficou consolidado como uma cordilheira nessa região mnemônica. Se algo se perdeu entre as conexões sinápticas, formaram-se vales onde correm rios de esquecimento. Continuo ouvindo-a e não consigo associar fatos, datas e acontecimentos da mesma forma e na mesma sequência. As impressões momentâneas daqueles episódios na vasta planície de sua memória aparecem distorcidas na minha mente. Há apenas um tempo real, no presente, que é o tempo no qual se recorda. É confuso o presente, não tem noção espacial, geográfica, cerebral. Não sabe ainda o que ficará gravado ou será esquecido. A erosão ainda não correu ventos e águas no presente, não moldou as superfícies que, por fim, me permitirão recontar, reinventar, essa história e moldar os contornos difusos das identidades, das intenções, dos gestos. Busco os dados, tento refazer o passado como ela o registrou visível na minha memória só minha, tão pessoal, intransferível... Inútil. Outras são as marcas que sulcaram a terra das minhas recordações e me perco no meu labirinto de lembranças, sem delinear o espaço onde nossas memórias se encontrariam e caminhariam juntas, até o momento presente. Tento reconstruir uma memória do outro, mas acabarei criando uma personagem a qual darei vida e colocarei mentiras na boca. Inventarei fatos e teias, evocarei o passado como um  monstro que trarei à luz com essas minhas verdades inventadas. 

Recordo que era domingo, acho. Poderia ser segunda-feira. O dia que a conheci seria útil de qualquer maneira, pois me lembro do vestido colorido e das alegrias daquele outro tempo. O espaço aqui se delineava como uma linha reta ou sinuosa, dependendo de que maneira eu decidisse conectar os fatos desde aquele primeiro momento, o momento que a vi. Do mesmo modo, seguindo essa linha imaginada no tempo e no espaço, eu poderia fazer o tempo correr para trás. Assim, eu a veria agora se transformando no regredir dos anos em algo que eu desconhecia até então, no que ela não é hoje, aquela outra pessoa que habita o pretérito. A ideia absurda, essa da quântica, de que o tempo pode seguir seu fluxo do passado para o presente ou do presente para o passado, me fazia agora transmutá-la desse objeto tangível, do qual conheço humores e cheiros, no algo que ela era naquele primeiro instante: um sorriso e um vestido florido, apenas. Talvez nessa perspectiva que a Física me concede, eu desejasse mudar ou alterar o nosso passado. Assim eu poderia, quem sabe, dar a cada acontecimento o seu devido valor, nem mais nem menos. Talvez assim eu pudesse ter criado mais montanhas e cordilheiras onde reinariam as recordações que a geografia do meu cérebro se regozijaria em trazer-me a tona. Correriam os rios do esquecimento nos vales sulcados dos eventos tristes que essa minha máquina do tempo quântica poria em sequência ordenada, um fato atrás do outro, na ordem que eu bem entendesse. “É você? Onde está?”. Escrutino o passado, invoco os deuses e os fantasmas da memória. Eles respondem, sempre. Mas tenho dúvida em alterar seus significados e suas danças ao redor do fogo. Tenho apenas as recordações, essa campina imensa onde se espraiem feridas e bálsamos. Reluto em visualizar outra dimensão, que há ou que se imagina possível. Vejo os cacos se espalharem pelo chão, nunca os vi se juntarem e reconstituírem o vaso novo onde deitarei as flores do passado que se reverte. Tento ter lembranças do futuro, abolindo a simetria do fluxo temporal. Continuo ouvindo-a derramar sua memória na minha percepção. A partir dela, do concreto que é ela, posso ver alguém esticando a língua da relatividade e, por fim, sentir o fluxo do tempo e o espaço da minha memória ser povoado pelas verdades inventadas que regariam flores amarelas.

6 comentários:

  1. Interessante pensar que o tempo pode se mover na direção contrária, melhor ainda seria estar lá consciente das experiências acumuladas e quizás, moldar o presente ou o futuro...mas há quem diga que nada é por acaso e que tudo acontece no tempo certo, talvez independente da elasticidade do tempo.

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  2. É complexo despir a MENTE X MÁQUINA DO TEMPO. Como mapear nossa história se muitos dos personagens entram e saem, sem completar o quebra-cabeça? Às vezes deixam digitais visíveis em nosso íntimo. Outros, desaparecem sem deixar pistas, dignas de serem investigadas por um bom perito criminalista. Como preencher essas lacunas para continuar escrevendo a história? E encontrar respostas para nosso EU? Se faltam peças-chave do quebra-cabeça... Drummond de Andrade disse: “No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho..." Será que aplicamos FORÇA suficiente para retirar pedras persistentes, e continuar montando o quebra-cabeça com peças do presente?

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  3. Bonita analogia da memória como uma geografia... Delicadas palavras. Adorei.

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  4. Tocante, belíssimo e maravilhosamente escrito!

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