A Persistência da Memória (Salvador Dali, 1931) |
“Agora, à distância, vejo
melhor as coisas passadas”, ela disse. A memória, então, parecia uma região
cerebral entrecortada por diferentes acidentes geográficos. Pequenos montes e
vastas depressões. Altas montanhas e estreitos vales. A memória era um espaço.
Apenas no passado podemos ver o tempo, o nosso tempo vivido, como um espaço. O
que foi mais significativo e mais tocou a emoção, ficou consolidado como uma cordilheira
nessa região mnemônica. Se algo se perdeu entre as conexões sinápticas, formaram-se
vales onde correm rios de esquecimento. Continuo ouvindo-a e não consigo
associar fatos, datas e acontecimentos da mesma forma e na mesma sequência. As
impressões momentâneas daqueles episódios na vasta planície de sua memória
aparecem distorcidas na minha mente. Há apenas um tempo real, no presente, que
é o tempo no qual se recorda. É confuso o presente, não tem noção espacial,
geográfica, cerebral. Não sabe ainda o que ficará gravado ou será esquecido. A
erosão ainda não correu ventos e águas no presente, não moldou as superfícies
que, por fim, me permitirão recontar, reinventar, essa história e moldar os
contornos difusos das identidades, das intenções, dos gestos. Busco os dados,
tento refazer o passado como ela o registrou visível na minha memória só minha,
tão pessoal, intransferível... Inútil. Outras são as marcas que sulcaram a
terra das minhas recordações e me perco no meu labirinto de lembranças, sem
delinear o espaço onde nossas memórias se encontrariam e caminhariam juntas,
até o momento presente. Tento reconstruir uma memória do outro, mas acabarei
criando uma personagem a qual darei vida e colocarei mentiras na boca.
Inventarei fatos e teias, evocarei o passado como um monstro que trarei à luz com
essas minhas verdades inventadas.
Recordo que era domingo, acho. Poderia ser segunda-feira. O dia que
a conheci seria útil de qualquer maneira, pois me lembro do vestido colorido e
das alegrias daquele outro tempo. O espaço aqui se delineava como uma linha
reta ou sinuosa, dependendo de que maneira eu decidisse conectar os fatos desde
aquele primeiro momento, o momento que a vi. Do mesmo modo, seguindo essa linha
imaginada no tempo e no espaço, eu poderia fazer o tempo correr para trás. Assim,
eu a veria agora se transformando no regredir dos anos em algo que eu desconhecia
até então, no que ela não é hoje, aquela outra pessoa que habita o pretérito. A
ideia absurda, essa da quântica, de que o tempo pode seguir seu fluxo do
passado para o presente ou do presente para o passado, me fazia agora transmutá-la
desse objeto tangível, do qual conheço humores e cheiros, no algo que ela era
naquele primeiro instante: um sorriso e um vestido florido, apenas. Talvez
nessa perspectiva que a Física me concede, eu desejasse mudar ou alterar o nosso
passado. Assim eu poderia, quem sabe, dar a cada acontecimento o seu devido
valor, nem mais nem menos. Talvez assim eu pudesse ter criado mais montanhas e
cordilheiras onde reinariam as recordações que a geografia do meu cérebro se
regozijaria em trazer-me a tona. Correriam os rios do esquecimento nos vales
sulcados dos eventos tristes que essa minha máquina do tempo quântica poria em
sequência ordenada, um fato atrás do outro, na ordem que eu bem entendesse. “É
você? Onde está?”. Escrutino o passado, invoco os deuses e os fantasmas da
memória. Eles respondem, sempre. Mas tenho dúvida em alterar seus significados
e suas danças ao redor do fogo. Tenho apenas as recordações, essa campina
imensa onde se espraiem feridas e bálsamos. Reluto em visualizar outra dimensão,
que há ou que se imagina possível. Vejo os cacos se espalharem pelo chão, nunca
os vi se juntarem e reconstituírem o vaso novo onde deitarei as flores do passado que
se reverte. Tento ter lembranças do futuro, abolindo a simetria do fluxo temporal.
Continuo ouvindo-a derramar sua memória na minha percepção. A partir dela, do
concreto que é ela, posso ver alguém esticando a língua da relatividade e, por
fim, sentir o fluxo do tempo e o espaço da minha memória ser povoado pelas
verdades inventadas que regariam flores amarelas.
Interessante pensar que o tempo pode se mover na direção contrária, melhor ainda seria estar lá consciente das experiências acumuladas e quizás, moldar o presente ou o futuro...mas há quem diga que nada é por acaso e que tudo acontece no tempo certo, talvez independente da elasticidade do tempo.
ResponderExcluirÉ complexo despir a MENTE X MÁQUINA DO TEMPO. Como mapear nossa história se muitos dos personagens entram e saem, sem completar o quebra-cabeça? Às vezes deixam digitais visíveis em nosso íntimo. Outros, desaparecem sem deixar pistas, dignas de serem investigadas por um bom perito criminalista. Como preencher essas lacunas para continuar escrevendo a história? E encontrar respostas para nosso EU? Se faltam peças-chave do quebra-cabeça... Drummond de Andrade disse: “No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho..." Será que aplicamos FORÇA suficiente para retirar pedras persistentes, e continuar montando o quebra-cabeça com peças do presente?
ResponderExcluirBonita analogia da memória como uma geografia... Delicadas palavras. Adorei.
ResponderExcluirLindo, lindo...
ResponderExcluirTocante, belíssimo e maravilhosamente escrito!
ResponderExcluirObrigado, Cassia!
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