sábado, 26 de novembro de 2011

Um Corpo que Cai


Riding with Death, Jean-Michel Basquiat, 1988
Nunca imaginei que cairia daquela varanda. Agora estou aqui, tentando lembrar e reviver cada segundo como se com isso conseguisse desfazer o momento infeliz, estúpido, no qual cometi o deslize. Desequilíbrio. Morrer é foda! Ainda mais dessa maneira ridícula que me aconteceu. Sim, adianto-lhes para que não fiquem apreensivos ou pensem que ao final da minha fala me verão voltando para casa, comprando pão e leite, como se eu fosse viver mais um dia, mais uma noite além dessa manhã: estou morto agora, nesse momento que exponho os derradeiros pensamentos que me cruzaram a cabeça. Cabeça, aliás, que está em estado deplorável.  A queda de seis andares a estropiou quase por completo. Eu mesmo se mirasse minha cara arrebentada dificilmente me reconheceria. Enquanto caía senti certo prazer no planar entre os andares. Mas isso não durou mais que milésimos de segundo, pois me lembro do temor odioso quando me apercebi que iria arrebentar no chão como um saco de cimento caindo do céu. O dia estava claríssimo naquela manhã. Antes de adentrar a varanda, elevar-me naquele banquinho, e bater o prego para o quadro que eu não penduraria, vi as pessoas correndo na praça lá embaixo. Fazia tempo que me prometia que seria uma delas, voltaria a caminhar, pararia de fumar, diminuiria a bebida e melhoraria a dieta. Não faria mais nada disso, do mesmo modo que não veria aquele quadro pendurado na parede da varanda que dava vista para a mesa de jantar. As mãos, agarradas naqueles inúteis martelo e prego, não tiveram tempo nem reflexo para se agarrarem em nada que evitasse o desfecho da minha morte. Segundos eternos se passariam até que eu me esparramasse arrebentado na poça de sangue que se formou sob meu corpo franzino. Apesar do corpo pouco, até que fiz um bom barulho... Lembro-me de um som seco, indefinido, de qualquer coisa que caísse de altura elevadíssima. Ainda vivi alguns minutos. Não tenho muita noção de quanto. Podem ter sido uns dois, três minutos... Dez? Quinze? Segundos? Não sei... Na iminência da morte, o tempo assumiu outra dimensão na qual, agonizante, tive pouca ideia de transcurso. Lembro-me do gosto de sangue. Logo após a batida foi a primeira sensação: o sangue inundando a boca. Nem mesmo os ossos que senti quebrar, os dois braços que tentaram ridícula e inocentemente amortizar o tombo, e as costelas, que senti estilhaçando em uma sequência, foram mais percebidos que a profusão do gosto sanguíneo, salgado, viscoso... Vi, ainda que muito turvado, as mães fechando os olhos das crianças para que não vissem o horror que era eu, estatelado ali na calçada. Vi também que alguns não tinham o menor pudor. Olhavam-me e tentavam apreender cada detalhe da minha desgraça. Não lhes interessaria que eu tivesse conseguido afixar o quadro na parede. A minha morte, nessa perspectiva da inutilidade e no olhar curioso ou indiferente dos que viveriam mais que eu, parecia ainda mais esdrúxula. Alguém deve ter chamado uma ambulância. Espero que sim, pensei. Alguma esperança ainda me restaria. Mas não ouvi sirenes. Se vierem, não chegarão antes de minha morte. Isso eu sei.

3 comentários:

  1. Escorregadela? A matéria desprendeu-se do espírito, e lá estava presenciando tudo. O espírito suicida acompanhou todo instante de sua trágica morte. Vida além da vida... Ou melhor, vida após morte... O ser suicida às vezes age “consciente”, ou mata-se aos poucos a cada amanhecer, inconscientemente. É inútil pensar que a morte acabe com todas angustias, se assim fosse, seria muito fácil. Como disse no texto morrer é ...

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  2. Sim, lá estava, estupefato, presenciando tudo...

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  3. Realmente a morte não resolve nada...Então por que anteciparmos?
    O texto reflete um lado desconhecido, mas as sensações parecem muito reais.
    Novamente, parabéns pelo texto! Interessante conversamos sobre isso e me deparar com o texto.

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