sexta-feira, 20 de junho de 2014

Vinte poemas desesperados e uma canção de amor


E me arranco tonto, do meio das tuas pernas brancas
No teu precipício, descansa e mora a minha morte
Na tua barriga, a minha cabeça
Ali teu coração parece estar
A anatomia também se faz insana
Teu corpo, todo remanso e desarmonia, 
A cada noite ressuscita meu vício 
Quando pensava que nada dele restaria

domingo, 15 de junho de 2014

Um poeminha brasileiro de domingo

Eu tenho cá no peito um poema que desabrochará algum dia. Um poema feito de rua, de cheiro de esgoto e de criança com fome. Esse poema passa pela Paraíba, pelo Piauí, sente a umidade das florestas do Norte e toma banho na água fria de uma praia do Rio. Esse poema olha para os prédios da avenida Paulista, onde a grana destrói coisas belas e enche de lágrimas e alegria as sarjetas dos Jardins. O poema no meu peito queria ser libertação. Ainda é meio caminho, esse poema pobrezinho, com vontade de chorar. Mas ele sabe para onde quer caminhar e sabe de que lado está. Ele é emoção, é bem verdade, essa falsa, doce, sedutora, mas tão bem vinda conselheira. Esse poema é brasileiro, verde amarelo e com grito de gol na boca. Como não ser emoção?! Mas não se engane, esse poema é também razão, tem a lâmina aguda de um João Cabral, é também um Cão sem Plumas. Esse poema não é cego. Ele nasceu em Vidas Secas, chorou com a morte de Baleia e terá sempre um gosto sanguíneo de Sertão baiano ou mineiro nas veias Sagaranas. Ele me atravessa como um rio, como um rio de Paulinho, e meu coração se deixa levar. Nesse rio nado com meu povo, essa coisa difusa, mítica e única que é o Povo Brasileiro. Nadar com o povo, ensinava um Freire, não é nadar para ele, que assiste nas arquibancadas, mas nadar com ele, não com quem o oprime. Meu poeminha de domingo ainda é poema oprimido,com desejo de voar, mas não tem vontade de ser opressor. Esse poema é meio caminho ainda, somente um abre alas de um carnaval ainda por chegar. A apoteose, ainda tão distante, eu vejo lá no fim da avenida. Mas visto a utopia, sambo junto. O poema pobrezinho não é passista de primeira linha, mas tem uma vontade danada de se vestir de alegria.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Angel Wings


Na tua alma clara
Diviso dois sóis acesos
Do outro lado da calçada
Chega perto
Acende as velas
Molha a língua
No escuro do quarto
Traz teu corpo iluminado
Para o que resta do cansaço
Que se estende pelos dias
Traz teu hálito alado
Para dar asas de anjo
E cheiro de unguento
A cada dor do passado

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Frontiers

Em cada livro há um pedaço de mim antes inacessível. Eu o desconhecia, até contar-me o autor dessas coisas que eu apenas supunha existir. Essa fronteira fechada do eu conversa em silêncio com as páginas e as letras que saltam no ar a minha frente, brincam nos meus olhos e, por fim, penetram pelas rachaduras da minha alma esburacada (essa entidade sempre tão permeável a palavras de outros). Já não é mais fronteira, posto que território novo, ampliado, e sob nova direção. Curioso que quando as absorvo, essas palavras bailarinas, com o cheiro da tinta ainda nos dedos, parecem-me tão minhas que chego a pensar que eu mesmo poderia tê-las deitado ao papel em um momento de sono ou de sonho. Não, não fui eu a roubá-las da letargia de ser apenas palavra. Não as arranquei dos dicionários e lhes dei a forma mágica de frases, como coelhos que pulam da cartola e me lambem os dedos enquanto teclo. Mas passo a tê-las para sempre ao meu lado, esses assombros de beleza ditados por algum anjo ou demônio nos ouvidos dos outros. Cada livro me chega como uma brincadeira de criança que não se quer acabar. Quando vai embora (em verdade um livro nunca te abandona), com a tristeza solene no virar da última página, deixa para trás a alegria, a tristeza, os amores, as dores e as ilusões de todas as estórias ainda por ouvir e por contar.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Em Maio

Que mulher trará flores em maio? Aquela que é doce e amarga, corajosa e cheia de medos, que deita reclames ao país injusto e chora pela miséria nas calçadas. Lê poesia antes de dormir e faz café forte pela manhã. Espalha os meus brinquedos pela casa e grita que não quer mais brincar. Põe a mão nos meus olhos e me faz ver o invisível. Ama o sol, o sorvete, o fortuito. Ri desbragadamente sem sentido aparente, mas aparenta ser feliz e mente sobre isso docemente. Se vier em maio virá com um cheiro de solidão nas mãos e uma pele tão quente que já me sobe um frio pela espinha...

Freedom is a state of mind

O silêncio e o desejo romperam as janelas da casa. A alma, castiça até então, deu-se mãos ao corpo pagão e foram brincar no pátio. Sem os medos da chuva, dos dias cinza, da inflação, das mortes no jornal, dos olhares de descontentamento com a alegria dela que se espalhava pela praça. A força que encontrara vinha de onde tudo se faz desassossego, da inquietude serena e lasciva da sua vida sem janelas. Havia nascido na solidão das horas secas, agudas, escuras, essa força dela. Do ventre do medo, junto às vísceras que inchavam a barriga nojenta, purulenta, desse desafeto da liberdade, ela fermentou seu dia novo. Nem deu bola para os dias sem sol ainda a atravessar. Não há liberdade sem conta a pagar. O pedágio do caminho novo era devido. Pagaria com o saldo de sorriso que lhe sobraria a partir de então. Sem tempo mais a perder, recolheu os abraços amigos espalhados pelos continentes e vestiu-se dessa couraça que apenas aos livres se pode conceber. Sorriu leve e docemente com minhas palavras. Era livre.

sábado, 26 de abril de 2014

Inacabado


Tu, que não sabes da missa um terço, 
Não penses que a vida é de milagres 
Ou de santos-anchieta
A vida é feita é de (do) concreto
Segue reta e áspera
Lâmina cortante dos dias
Mas tem uma suavidade
Que por vezes lembra a seda
"Olhai os lírios do campo"
Mas não deixe de provar o sangue
Que a rosa te dá ao dedo
Vermelho e doce
A vida, meu caro, minha cara,
É um jardim 
Com segredo de flores
E cochichar de dores
Onde depositas tua coragem e teu medo
Até que se finde o teu último desejo.

Lá em casa

Chico, quando jovem, teve uma grande felicidade. Para a maioria dos mortais, os livros jaziam nas estantes. Na casa dos Buarque, ao contrário, os livros caminhavam pela sala...
Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Fernando, Sabino, José Carlos de Oliveira, Vinicius de Moraes e Sérgio Porto.


quarta-feira, 12 de março de 2014

Recife 477 anos


No Recife chove a esperança de que a última gota lave o cheiro de mangue
No Recife chove a esperança que tudo por fim tenha perfume de mangue
No Recife chove em cima e embaixo das sete pontes
No Recife chove no mar e para o mar de lá chovem os rios
No Recife chove nos homens nos caranguejos nas igrejas e nos fortes
Estrangeiro andante errante vacilante
Findou que o Recife choveu em mim



O amor acaba (Paulo Mendes Campos)

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.