sexta-feira, 4 de março de 2011

Sunday Morning

O suor escorre pelo rosto ante a ameaça iminente da bala na cabeça. Havia tentado de todas as maneiras convencer o marginal que não precisava tirar-lhe a vida após ter entregado tudo o que pedia. Desfez-se em humilhações pelo clamor do simples ato de não se apertar o gatilho.  O átimo do disparo do projétil. O segundo existindo, apagaria toda a vida.  Sim, era verdade o que sempre imaginara por ouvir dizer: como que uma historieta de seus 62 anos cruzando o fundo da retina. O beijo da mãe ao acordar, os amigos da escola, a bicicleta, a primeira namorada, a faculdade de engenharia, o amor de Sandra, as filhas trazendo-lhe as netas, o saque no caixa eletrônico de duas horas atrás, a abordagem inesperada à entrada do carro. “Passa o dinheiro e toca pra casa, filho da puta!”. Foi tudo muito rápido. Fim de semana, cedo, rua quase vazia. Ninguém se apercebeu ou se envolveria. Agora estava ali. A mulher presa no banheiro com a cara arrebentada e ele, entre as panelas e legumes que esperavam o almoço de domingo, com o cano do 38 apontado na cabeça. Custava a acreditar que isso estava acontecendo com ele. Isso acontece com os outros. Os outros é que morrem no noticiário enquanto o dia segue seu curso. Por que diabos aquilo se passava com ele, com Sandra arrebentada no banheiro? Merda! Não podia fazer nada para ajudá-la.  Queria muito que aquilo acabasse logo. Queria que o fedor do álcool e da sujeira que exalavam do assaltante deixassem sua cozinha. Tentava manter a calma. Certamente poderia negociar e encontrar uma saída para a situação dramática, estúpida, em que se encontrava. Cofre aberto, dinheiro, joias, cartões e a chave do carro. Não há porque a morte. Cooperara, mesmo com os gritos e as coronhadas. O cara se mandaria com tudo, com esses sapatos imundos, e a vida seguiria. No dia seguinte voltaria ao trabalho e contaria aos amigos o ocorrido. “Está tudo bem agora”. O noticiário mostraria mortes de outros, cruas, insanas. Ele folgaria em saber do destino a que havia escapado. Manter a calma: era isso. Não há porque a morte, o pensamento insistia. Teria muito tempo ainda com as netas. As veria crescer como vira as filhas. Manhã de domingo definitivamente não combinava com morrer. Não estava nos planos de quem planejava ir à casa de praia dali a duas semanas para as férias de fim de ano. As netas estariam lá; adoram quando ele as levanta no alto e beija-lhes a barriga. Sandra prepararia o peixe e as filhas contariam do trabalho enquanto os genros discutiam sobre futebol. Duas semanas. Pensava como era estranha a sensação da relatividade do tempo. Do tempo passado e do tempo ainda não vivido. O suor escorria pelo rosto. Na historieta da retina o tempo de décadas fluía em segundos. Duas semanas parecia-lhe uma enormidade inalcançável. O átimo do apertar do gatilho e não haveria mais casa de praia. A vida apagada. O trabalho sujo quase terminado. Os sacos que pedira estavam cheios. Isso acabaria logo. Sentia o alívio. Não precisaria tirar-lhe a vida. A angústia de Sandra teria fim. O pedido humilhante pela vida. Os tiros. Três. O sangue e os pedaços dos miolos sobre a mesa. A perversidade, em passos rápidos, se dirigia ao banheiro...

7 comentários:

  1. Parabéns, querido. Texto muito bom. Fiquei presa com Sandra nô banheiro, esperando nao ouvir tiros...

    My top 5 !
    Beijos
    Adelaide

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  2. Mais uma vez percebo que sua crônica ilustra a realidade tal qual ela é!
    Infelizmente a criminalidade não tem freio nem fim! Nos resta apenas pensar da mesma forma que o marido de Sandra: "tudo acabará bem". E "torcer" para o nosso fim de semana não finde como o dele!!!

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  3. Congatulation Clístenes! It's so intresting and exciting!

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