sexta-feira, 6 de maio de 2011

Recife e Macondo: da lama ao caos


Choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias. Houve épocas de chuvisco em que todo mundo pôs a sua roupa de domingo e compôs uma cara de convalescente para festejar a estiagem, mas logo se acostumaram a interpretar as pausas como anúncios de recrudescimento. A atmosfera estava tão úmida que os peixes poderiam entrar pelas portas e sair pelas janelas, navegando no ar dos aposentos. Foi preciso abrir canais para escorrer a água da casa e desimpedi-la de sapos e caracóis, para que pudesse secar o chão, tirar os tijolos dos pés das camas e andar outra vez de sapatos. (Cem anos de solidão, Gabriel Garcia Márquez)

Foto: Guga Matos (JC Imagem)

                 Recife tá parecendo a Macondo de Gabriel. Nunca vi, em meus 15 anos na cidade, tamanha quantidade de água nas ruas e de caos no trânsito. O Instituto Nacional de Meteorologia informou que este abril foi o mais chuvoso dos últimos 33 anos na cidade. São Pedro não deu mole e abriu as torneiras celestiais na vazão máxima. Pra completar, Netuno decidiu elevar o nível das marés dificultando o escoamento das águas. Faltava apenas Noé aparecer procurando pelos principais representantes da cidade inundada para povoar sua arca. Estariam lá o leão e a cobra coral, visto que o timbu, mais uma vez, morreu afogado prematuramente. Embora não tenha resistido à piadinha futebolística, preocupo-me muito mais com quedas de barreiras e gente desabrigada (a população pobre, como sempre, sofre bem mais...). Para nós, os com-carro, incomoda o trânsito (recomendo tentar relaxar ouvindo Música Aquática, de Haendel. Afinal nossos prédios não estão em área de risco e chegaremos inteirinhos em casa). Mas impressiona como as pessoas ficam (ainda mais) estressadas com a lentidão dos veículos (por estes dias viramos uma São Paulo... Duas horas para percorrer trechos de 20 minutos). A cordialidade que costuma ser pouca, insuficiente e escassa tornou-se quase inexistente. Como se não suficiente, surgiu ontem (05/05) o boato de que a barragem de Tapacurá ultrapassara sua capacidade de armazenamento e havia estourado. Portanto, haveria uma inundação no Recife tão grande quanto à ocorrida em 1975. Muitos saíram mais cedo do trabalho (este que vos escreve incluído). Escolas e universidades liberaram as aulas do período noturno (Como não confirmaram a informação com os órgãos oficiais...?). A cidade quase parou. A combinação de gosto pela tragédia com telefones celulares, Facebook e twitter foi bastante efetiva. Depois Secretário e Governador explicando a inveracidade da informação e a sensação de como somos frágeis e susceptíveis a boataria e a desinformação (com graves e sérias consequências). Não estamos nem de longe preparados para situações-limite e esperemos que não nos ocorram. Fiquemos da lama ao caos e tentemos chegar vivos (e secos) em casa.

8 comentários:

  1. Feliz você Clístenes! Em 1975 eu viví coisa muito pior. Morava num apartamento no segundo andar e passei 3 dias vendo a água cobrir o carro na rua em frente à minha janela, onde eu ficava a maior parte do dia olhando tamanha quantidade de água. Me sentindo como na arca de Noé! Conseguí apenas colocar o fusquinha de minha mãe na rua para ver a água cobrir o capô em ondas por mais de 24 horas! Mais duas famílias em nosso apartamento com meus pais e irmãs! E teve também a maldade na notícia de que Tapacurá tinha estourado. Pessoas apavoradas correndo nas ruas sem saber o que fazer nem para onde ir. Um verdadeiro terror! Parece mais uma reprise de um filme de terror! Depois ver as ruas cobertas de lama e muita gente querida sem casa e seus pertences! É muito triste constatar que nossas autoridades mudam apenas quanto aos sujeitos e não quanto às ações!

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  2. Sei disso, Rejane. Ouvi alguns "testemunhos" desta ordem... Terror mesmo.

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  3. Très intéressante ta réflexion, Clistenes !

    Mumu Meneveau Gonçalves

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  4. LEIDIVAM...

    Realmente caos é pouco para definir Recife esses dias... E agir com prudência e calma é coisa muito rara, apesar de necessário, NO TRÁNSITO NEM SE FALA... Então fico com o meu bom e velho metrô mesmo, NÃO É ASSIM UMA BRASTEMPE, mas ajuda pacas.
    Sabe professor, fico feliz por não ser o único que de vez em quando desanda escrevendo coisas sobre "COISAS", é claro que as suas são bem mais inteligentes e concisas que as minhas. Mas um dia chego lá e não me pergunte onde que também não sei.
    Bem, mesmo morando em prédio, concordo com o Gabriel Garcia Márquez e me diga uma: Cem anos de solidão é um livro? Se for, vou ler...
    E lembre-se: se for dirigir BOA SORTE e beber não se AFOGUE...

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  5. É, sim, Leidivam, um livro. Boa leitura dele e obrigado pela visita.

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  6. Prof. Clístenes, parabéns pelo blog, não conhecia, mas agora estarei acessando para participar de suas reflexões.

    Estive em Recife na quinta-feira (04/05/2011) e percebi as pessoas muito nervosas com as chuvas e com a elevação do nível dos rios em Recife. Realmente o Brasil não está preparado para enfrentar situações extremas, espero que os governantes atuem com sabedoria e com menos esperteza diante do caos que se forma.

    Um abraço.

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  7. Caro Thales. Seja benvindo. Sim, a situação é preocupante...

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