terça-feira, 31 de maio de 2011

A Transubstanciação Invertida

Permitam-me que, farto do que vejo acontecer todos os dias no mundo real, vá buscar meus relatos no mundo imaginário
Alexandre Dumas

                 
             Esses sonhos que insistem em perturbar a quietude que o momento de repouso promete, põem-me a sanidade psíquica em dúvida e risco. Entabular conversa com espírito-de-cachorro e ser perseguido por tapiocas se faz demasiado e começa a atrapalhar as mínimas seis horas de repouso que me são necessárias. Desconfio que realmente deva tomar apenas um comprimidinho daqueles por dia, mas aquela molezinha gostosa do benzodiazepínico inundando o sistema límbico sempre me faz duplicar a dose... Pareço tomado pelos profundos mistérios da deuteroscopia (Fenômeno psicopatológico, atribuído a certas pessoas, de ver, em forma de visões, acontecimentos fora do alcance da vista). Noite passada, por exemplo, apareceu-me a Joana D’arc. Apesar de um pouco chamuscada, estava bonita de armadura modelo 1429 e espada em punho. Indagou-me porque escolheram seu nome para uma fabriqueta de carvão em Caruaru. Deplacé! Protestou indignada. Disse-lhe que reclamasse ao Bispo, ou melhor, ao Papa recém-beatificado por curar do mal de Parkinson uma freira conterrânea sua. Mudar nome comercial deve ser milagre bem mais fácil, inclusive mais adequado, para um beato-ainda-trainee que regeneração neuronal. A bichinha fez biquinho e saiu toda magoada. Talvez tenha sido um pouco duro com ela, mas já era a quarta vez que me visitara à noite com a mesma lamúria em francês arcaico. Ainda mais toda pudica como é a Joana (lembremos que era conhecida como A donzela de Orléans...). Bem que me podiam aparecer, no meio da noite, francesas menos santas, como Isabelle Adjani ou Juliette Binoche, por exemplo. Além disso, esses sonhos com pessoas (ou cachorro) vindos do além me deixam muito reflexivo. O que está por trás deles, afinal? Alguma mensagem subliminar de que realmente há vida após a morte? Se há, terei que continuar a dar aula nas segundas às 7 da manhã? Haverá bancas de mestrado no além-vida? Existirão shows de Roberto Carlos além do horizonte? Divagações à parte, a verdade é que Morfeu não me tem sido muito generoso ultimamente. No delírio onírico de anteontem até ganhei um prêmio numa rifa (fato que nunca me ocorreu acordado), mas uma pomba aparecia do nada e atravessava a parede do quarto levando o bilhete premiado no bico. Ao tentar persegui-la, o único que consegui foi arrebentar o nariz na parede, visto que não era um desses sonhos nos quais a alma deixa o corpo e livra-se das restrições físicas habituais. Aliás, esse tipo de sonho sempre me ocorre ao contrário do que escuto relatado por outros: estranhamente é sempre o meu corpo que abandona a minha alma, a qual fica deitada na cama à espera da matéria fugidia. Foi num desses que descobri que temos, meu corpo e minha alma, preferências deveras antagônicas. Eu sem minha alma, ou melhor, meu corpo sem minha alma, manda o meu usual bom senso às favas. O corpo desalmado sempre sai para shows do Calypso ou Fábio Júnior, enquanto a alma fica em casa lendo Dostoievski ou algum compêndio de Química Orgânica. Esse fenômeno da transubstanciação invertida ocorre com maior frequência nos finais de semana. Sábado passado, por exemplo, meu corpo foi visto se esbaldando num show da banda Garota Safada, completamente embriagado de vinho Carreteiro. O corpo costuma retornar lá pelas quatro ou cinco da madruga, cantarolando o último sucesso de Luan Santana, para se reapossar da alma adormecida (sempre sinto um arrepio epidérmico no dedão do pé esquerdo quando o processo de reencarnação da alma se completa...).  Travam uma DR interminável (nem em sonho DR é curta...) sobre essa rebeldia do corpo ante os desejos da alma. O corpo se rebola todo para explicar a alma aquele cheiro de colônia barata no cangote que vai acompanhá-la, contra sua vontade, até a hora do banho matinal. Ele, por sua vez, reclama que detesta essa censura dela a impor-lhe música erudita, MPB ou Jazz como preferências musicais. Nunca se entendem. Portanto, quando me sonho sem corpo, sei que o danado escapuliu mais uma vez. Penso que o coitado deve ter algum desejo reprimido. Corpo pagão condenado à prisão em uma alma metida à santa. Talvez um tipo de alma-Joana, traumatizada por tentar ser boazinha e acabar virando churrasco. O fato a ser lamentado é que a Adjani, fazendo biquinho, essa nunca me apareceu...

7 comentários:

  1. Hilário!!!! ESSE É DIGNO DE UMA BOA PUBLICAÇÃO!!!

    ResponderExcluir
  2. LEIDIVAM...

    Professor, quer um conselho?
    Vá à "missa" das 19hs e depois ao show das 21:00 e chegue em casa à 1:00 da madrugada, durma até às 6:30 e terá acalentado a alma, satisfeito o ego [por que ninguém é de ferro] e presenteado morfeu com quase 6 horas de sono. Não digo sempre, mas de vez enquando é bom...

    ResponderExcluir
  3. Merci, Naymme! Aliás, estranhamente, achei Joanne muito parecida com você...

    Valeu a dica, Leidivam! Como diríamos, ninguém é óxido de ferro...

    ResponderExcluir
  4. Amei! mas acho que nem em sonho eu imaginaria seu corpo se esbaldando com Garota safada e vinho carreteiro. rsrsrs Dommage que nao foi a Adjani! Eu tive a honra de sonhar e beijar muito o Chico Buarque essa semana (que meu marido nao me leia) ;-)
    Beijos

    ResponderExcluir
  5. Obrigado, Marinheira, por ancorar por aqui... Bjos!!

    ResponderExcluir
  6. A “donzela”, que visita ilustre!!! Sonhar é algo interessante, às vezes sonhamos acordados ou durante nosso repouso. Quando acordados, conscientemente trazemos ao nosso convívio pessoas, situações, momentos, sentimentos..., que talvez jamais ocorra. Quando em repouso, no silêncio do nosso inconsciente viajamos no tempo, reencontros, encontros, emoções, sensações, tormentos, anseios, prazer, alertas, lembranças...
    Algum tempo atrás, estava no aconchego do meu quarto, no momento de descanso, e quando notei andava pela casa... Fui até a cozinha, talvez estivesse com sede, sei lá; retornei ao meu quarto, e lá estava meu corpo deitado na cama, minha alma não queria voltar, acho que queria folga. Foi um momento de conflito, por mais que ela não quisesse, teria que voltar. Quando retomei a consciência, estava com o coração acelerado, sensação bizarra. Segundo alguns estudiosos desse mundo invisível, tive um “Desdobramento”.
    Gostaria de recomenda-lhe o filme “MINHA VIDA NA OUTRA VIDA”, baseado no livro YESTERDAY CHILDREN, autobiografia de Jenny Cockell. É um drama que conta a história de Jenny, uma mulher do interior dos Estados Unidos. Tenha bons sonhos, dormindo ou não!!!!!!!!!

    ResponderExcluir
  7. Continuo achando a Adjani melhor visita, caro(a) anônimo(a)... Obrigado pela visita e pelo compartilhamento de seu momento de "desdobramento".

    ResponderExcluir